09/04/2025 13:36 - Fonte: CNJ
Tabelião há mais de 30 anos, José de Brito Filho iniciou sua trajetória nos cartórios como escrevente na década de 1960, enquanto ainda cursava a faculdade de direito, no Rio de Janeiro. Hoje, aos 80 anos, e à frente do cartório mais antigo do país, fundado em 1560, o titular do 1.º Ofício de Notas do estado guarda na memória algumas das profundas transformações ocorridas nos serviços extrajudiciais ao longo das décadas, sobretudo a partir da existência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que completa 20 anos em 2025. Uma das mudanças mais importantes, segundo Brito, veio com a regulamentação dos atos eletrônicos. “Antigamente, éramos verdadeiros escribas, obrigados a redigir escrituras à caneta. Depois, vieram as máquinas de escrever e, por fim, os computadores com seus livros virtuais”, relembra. Para José, a informatização dos cartórios representa, acima de tudo, maior segurança aos atos públicos.
Desde 2018, o CNJ estabelece regras básicas de tecnologia da informação para tornar os serviços de cartório mais seguros e confiáveis. O Provimento n. 74 exige medidas para proteger os dados, evitar falhas que prejudiquem o atendimento e garantir que documentos eletrônicos possam ser acessados e lidos no futuro. Além disso, os serviços devem manter trilhas de auditoria para identificar responsáveis por alterações nos atos. Funcionária do quadro administrativo do ofício de notas, Fernanda Gomes conta que, à época, o cartório já estava em um movimento de mudança, tendo a pandemia como um catalisador. “O 1.º Ofício já buscava tecnologias para viabilizar a informatização, mas precisávamos de um regramento. Felizmente, quando a normatização aconteceu por meio das instruções do CNJ, veio para nós uma plataforma pronta e que funciona muito bem”, relata.
Fernanda se refere ao E-notariado, sistema criado e gerido pelo Colégio Notarial do Brasil (CNB) que conecta digitalmente os usuários aos serviços notariais oferecidos pelo país. Em 2020, o CNJ publicou o Provimento n. 100, que dispõe sobre a prática dos atos notariais eletrônicos utilizando a ferramenta. “Foi uma revolução. Nós pudemos atender pessoas que estão fora do país e que antes seguiam um trâmite muito mais complicado para resolver seus assuntos aqui”, conta Fernanda. A rotina acabou sendo incorporada ao cotidiano da serventia devido à eficiência do trabalho e da comunicação na plataforma digital. O impacto foi percebido, em especial, no atendimento ao público. Somente em 2024, o cartório fez cerca de 2,8 mil atendimentos presenciais e virtuais por mês.
Embora os avanços proporcionados pelo Provimento n. 74 tenham permitido que muitos cartórios obtivessem um espaço seguro para a realização de atos eletrônicos, o cumprimento das diretrizes pelas serventias extrajudiciais de algumas cidades esbarrava em problemas como pouca infraestrutura física e tecnológica e baixa arrecadação. “Nesses 18 anos em atividade, acabei conhecendo um pouco o país e pude compreender as diferenças entre grandes centros urbanos e municípios menores, especialmente como as particularidades de cada local influenciam os serviços cartoriais”, confirma Juan Pablo Gossweiler, registrador de imóveis e presidente do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR)
A experiência de Juan auxiliou na percepção de como essas diferenças poderiam ser superadas, de modo que todos os cartórios imobiliários pudessem contar com suporte digital e tecnologias para facilitar a vida de cartorárias, cartorários e seus clientes. Nesse contexto, o Programa de Inclusão Digital (PID), implementado pelo ONR, concentra seus esforços em apoiar as serventias de registro de imóveis elegíveis na adequação às exigências do Provimento n. 143/2023, da Corregedoria Nacional de Justiça. O ato regulamenta a estrutura, a geração e a validação do Código Nacional de Matrícula, que identifica cada imóvel no Brasil de forma padronizada.
“A ideia é sair do papel e integrar todos esses cartórios em uma base única de dados e serviços”, resume Gossweiler. Para isso, o programa viabilizou a compra de equipamentos, a implantação de sistemas e a contratação de serviços especializados em digitalização e tratamento eletrônico de informações. A iniciativa já está em execução e agora avança para uma nova etapa: a implementação da Inteligência Artificial do Registro de Imóveis (Iari). O mecanismo combina diferentes tecnologias de automação para auxiliar as serventias, com funções que incluem a extração automática de dados das imagens de matrículas dos imóveis e a otimização da indexação dessas informações.
Essa transformação digital já alcança serventias de menor porte, como o Cartório de Registro de Imóveis de Entre Rios, na Bahia. A unidade, que atende um município de 48 mil habitantes, era até recentemente um exemplo dos desafios enfrentados por cartórios com pouca infraestrutura. "Quando cheguei aqui, não havia sistema algum. Tive que carregar os livros manuscritos no porta-malas do meu carro até começar a organizar nosso acervo. Era tudo o que eu tinha na época: poucos recursos e muita determinação", relata Renata Morais Rocha, oficial do cartório. Com o PID, a realidade mudou. "Meu cartório saiu de uma situação estruturalmente muito complicada para a ponta da Iari. Hoje, eu tenho todo o meu acervo digitalizado”, celebra.
Segundo Renata, o benefício aos usuários é evidente. "Antes, uma certidão de imóvel dos anos 1970 demorava 15 dias para ficar pronta. Na melhor das hipóteses, para certidões mais recentes, eram cinco dias úteis. Agora, com o número da matrícula, é possível visualizar a imagem do imóvel no sistema sem fazer buscas demoradas", explica. A serventia, que já integrou suas 15 mil matrículas à base nacional, tornou-se caso emblemático de como a tecnologia pode superar desigualdades regionais.
Cartórios e a preservação histórica
Além de emitir certidões, registros e autenticar documentos, os mais de 12,4 mil cartórios em funcionamento atualmente no país também desempenham um papel importante na preservação histórica. “O acervo cartorial é riquíssimo e de grande importância para a sociedade. Esses documentos não apenas comprovam direitos e garantem segurança jurídica, mas também são fontes essenciais para pesquisas históricas, genealógicas e socioculturais”, afirma Rosali Maria Nunes Henriques, historiadora pela Universidade Federal de Juiz de Fora e doutora em Memória Social pela Unirio.
Recentemente, a historiadora obteve na Justiça um alvará para acessar documentos públicos com mais de 100 anos em um cartório de Piranga, em Minas Gerais. Doutoranda pela Universidade Nova de Lisboa, Rosali pesquisa as famílias das antigas freguesias da Vila de Piranga. O estudo abrange desde o início do século 18, quando as primeiras famílias chegaram à região atraídas pelas terras férteis e em busca do ouro, até a década de 1920. “Busco compreender as transformações sociais da região, tendo como fio condutor as mudanças na atribuição de sobrenomes e a mobilidade das famílias, analisando seu espalhamento e a expansão para áreas periféricas”, complementa a pesquisadora.
Ao buscar cartórios da cidade para acessar registros de pessoas nascidas no final do século 19, Rosali foi surpreendida por uma interpretação equivocada da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) pelas serventias. Na decisão em favor da historiadora, a juíza Clara Maciel, da Vara Única Piranga (MG), destacou que, de acordo com o Provimento n. 134 do CNJ, “o acesso às informações constantes nos livros de Registro Civil das Pessoas Naturais é livre, permitindo que o interessado solicite certidões de breve relato”. O normativo estabelece medidas a serem adotadas pelas serventias extrajudiciais em âmbito nacional para o processo de adequação à LGPD.
Rosali aguarda os meses de julho e agosto deste ano para voltar ao Brasil e dar continuidade à pesquisa, caso consiga na Justiça também o direito de fazer anotações sobre os documentos consultados. A historiadora reconhece o valor documental dos cartórios e espera que futuras normas possam também contemplar o acesso a documentos centenários por pesquisadores.
A história de um cartório e a atuação do CNJ também fizeram a diferença em Santiago do Iguape, vila pertencente ao município de Cachoeira, na Bahia. Em 2019, o Conselho determinou a reativação do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais com Funções Notariais do distrito, localizado em região quilombola, no recôncavo baiano. A decisão garantiu o serviço para mais de 10 mil pessoas que moram na região. A unidade havia sido desativada por decisão do Poder Judiciário baiano, que alegava que a comarca se mostrava inviável financeiramente.
Na outra ponta, a população de Santiago do Iguape — composta de pessoas que vivem da lavoura, pesca e do “catado do marisco”—, alegava que a permanência do cartório no distrito se justificaria para garantir a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a qualidade de vida a essa população. Conselheiro do CNJ à época e responsável pela decisão, Valdetário Monteiro argumentou que a extinção do cartório ocasionaria prejuízos não apenas às pessoas, mas ao país. “Entre os valiosos livros existentes no acervo do cartório, alguns contém tristes lembranças de um Brasil escravagista, onde foram registradas compra e venda de seres humanos”, afirmou.
Fonte: CNJ