Como vimos nas semanas anteriores, a convivência
more uxorio (ou assemelhada a das pessoas civilmente casadas) poderia constituir prova suficiente do casamento, tendo em vista o reconhecimento do casamento de fato entre nós. Ademais, a disparidade quanto ao tratamento jurídico dispensado aos conviventes na união estável e as pessoas que contraíram casamento civil não se limita a sucessão a causa de morte, alcançando outras questões tais como a da (des)necessidade da vênia conjugal para a alienação de imóveis, ou para a prestação de garantias tais como a de fiança e a de aval.
Pode-se dizer que os posicionamentos quanto à questão da constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil poderiam ser divididos em dois grandes grupos: I. o primeiro invocando a liberdade e a privacidade, a fim de evitar a equiparação entre união estável e casamento civil; e II. o segundo advogando a equiparação de direitos entre a união estável e o casamento civil, ao argumento da igualdade e da não discriminação.
Tradicionalmente, a família era vista como um lugar de “proteção numa célula unitária reconhecida como primordial”.
[1] Sob certa perspectiva da Teoria do Direito, em vista deste caráter “primordial”, pode-se dizer que a família é uma instituição. No Direito Canônico, identificavam-se as instituições como algo que, sem depender de pessoas, existe e funciona em razão de uma decisão autoritativa proveniente de Deus. Entretanto, a sociologia contemporânea define instituição “como estrutura relativamente permanente, anterior aos indivíduos que nela encontram paradigma de seu comportamento e indicador de seu papel no grupo a que pertencem”.
A instituição geralmente comporta diversos grupos sociais juridicamente relacionados, reputados como institutos jurídicos, “pois se são realidades inerentes à sociedade humana, do ponto de vista jurídico, exige-se que sejam reguladas, com normas de Direito positivo”. O casamento, a filiação, a união estável, as famílias monoparentais, etc. são espécies de institutos jurídicos vinculados à Família-instituição.
[2]
Apesar de ser vista como instituição, a família passou a ser questionada por diversas teorias (especialmente as de inspiração marxista), que passaram a vê-la como uma alienação fundamental “formando um bloco coerente com a tradição e a propriedade”.
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O casamento civil nos moldes tradicionais passa a ser questionado como uma estrutura repressiva, o que levou os jovens a partir da década de 1960 buscar fugir destes esquemas pelo expediente das chamadas uniões “livres”. É interessante notar aqui uma idéia de liberdade que guarda relação com a doutrina da Finalidade Individual do Estado (
Lehre vom individualistischen Staatsweck), dominante na doutrina alemã no início do século XIX, que viam a defesa da liberdade individual como uma justificativa e um limite ao poder estatal. Mas, em razão da liberdade individual não estar sob a mira da intervenção do Estado, “de acordo com as percepções de direito natural, ela foi considerada como sendo pré-estatal, livre da organização e da formação estatal”.
[4]
Na Alemanha, parece prevalecer atualmente tais concepções libertárias em relação às uniões conjugais diversas do casamento civil. Naquele ordenamento jurídico, inexiste qualquer previsão legal quanto ao dever de sustento mútuo para os conviventes não casados. Existe previsão, por outro lado, dos deveres próprios de cuidado em relação a filiação comum havida durante a convivência de fato (§ 1602.2, BGB). Ademais, inexiste o direito de reclamar indenização por serviços prestados durante a convivência (
Lebensgefährte) após a ruptura da união, e não existem regras específicas quanto a aquisição de bens durante a convivência; de modo que os bens adquiridos em nome apenas de um dos conviventes permanecem na propriedade exclusiva dele.
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Bens comprovadamente adquiridos com a utilização de recursos de ambos os conviventes só serão considerados como propriedade comum se houver consenso entre eles. Contudo, não é incomum a existência de demandas no judiciário alemão invocando regras sobre enriquecimento sem causa (§ 812, BGB) ou do Direito Societário (§ 705 e seguintes, BGB) a fim de fundamentar pedidos de indenização ou de partilha dos bens adquiridos na constância da união de fato.
[6] Segundo dados do ano de 2003, naquela época existiam cerca de 2,3 milhões de casais formados a partir de uniões de fato na Alemanha, a maioria de jovens convivendo em uma espécie de período de “experiência” como etapa provisória que antecede ao casamento. Apenas uma minoria entre os casais “de fato” na Alemanha consideram a união de fato como uma alternativa ao casamento civil, conforme dados da mesma pesquisa de 2003.
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De outra banda, verificou-se um considerável aumento no número de casais constituídos sob as regras da união estável. Conforme o censo demográfico de 2010, que analisou as mudanças quanto aos “padrões de nupcialidade” desde o ano 2000, verificou-se um considerável incremento nas uniões de fato (de 28,6% para 36,4% do total) “e uma consequente redução dos casamentos, com destaque para a modalidade civil e religioso (de 49,4% em 2000 para 42,9% em 2010)”.
[8] Este aumento no número de uniões de fato no Brasil pode ser explicado por fatores tais como a simplicidade e os custos para a formalização da união estável, mas também pode ser atribuído a um senso comum equivocado que considera que a união estável é juridicamente equiparada ao casamento civil no ordenamento jurídico pátrio.
A relativa liberdade em relação às formalidades para a constituição da união estável parece ser um dado positivo: “Todavia, a excessiva liberdade, em Direito, é muito perigosa, pois acaba por escravizar o mais fraco. (...). Assim, o Estado tem interesse em proteger as pessoas, evitando lesões de direito”.
[9] Boa parte das pessoas que convivem em união estável só vão saber das diferenças de tratamento em relação aqueles que optaram pelo casamento civil quando chegam às portas do poder judiciário ou do Instituto Nacional da Previdência Social. É neste momento, por exemplo, que a companheira descobre que não pode anular a venda do único imóvel da família, pois o adquirente estava de boa-fé e não tinha como saber daquela situação de fato. Aliás, esta é mais uma premissa equivocada em relação a questão das uniões de fato.
Como vimos na segunda parte desta coluna, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça costuma afirmar que não pode reputar inválida a alienação de bem imóvel sem a vênia do outro convivente porque se deve considerar o fato de que a união não é uma união “cartorária e solene” como o casamento civil. Contudo, tal argumentação baseia-se em uma premissa equivocada: o casamento civil para existir não depende de solenidades ou de registro! A inobservância das solenidades pode conduzir a invalidade do ato; mas a nulidade não se confunde com a inexistência: “Tanto assim que é possível, nos casos concretos, tirar-se algo do nulo, o que se não conceberia, se nulo e inexistente fossem o mesmo. Nulo não alude a não-ser, mas apenas a não valer”.
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Apesar de nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento civil produz os mesmos efeitos do casamento válido (artigo 1.561, CC). Ademais, a certidão do registro civil é um meio de prova do casamento. Mas, em sendo “justificada a falta ou perda do registro civil, é admissível qualquer outra espécie de prova” (artigo 1.543, CC). A posse de estado de casados, inclusive, pode ser um meio de prova do casamento civil (artigo 1.545); conduta deveras semelhante ou idêntiva à convivência
more uxorioque se exige para a comprovação da união estável. Neste ponto, a diferença entre união estável e casamento é quase nenhuma. Ora, já se valorizava bastante, nas primeiras décadas do século passado, o “fático” nos domínios do direito.
A linguagem do Direito rende grandes homenagens ao “fato”, desde então. Esta é uma linguagem relativamente recente no direito. Assim, pouco a pouco se incorpora no vocabulário jurídico. No Direito Civil, por exemplo, fala-se em domicílio de fato, separação de fato, sociedade de fato etc. As estruturas “de fato”, em diversas áreas do direito, tendem a ganhar eficácia jurídica, à semelhança das correspondentes estruturas “abstratas” ou “ideais”, tradicionalmente reguladas.
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Na primeira parte desta coluna, demonstramos que durante quase 400 anos o Direito aplicável entre nós imputava idênticos efeitos ao casamento “de direito” ao casamento “de fato”. Apesar de talvez ser voz minoritária neste ponto, aprendi ainda quando era estagiário de advocacia com Flávio Henrique Santos, que os atores jurídicos devem ter a coragem de contrariar a opinião da maioria. De modo que defendo a eliminação da figura da união estável do nosso ordenamento, que passaria a ser considerada um casamento de fato, com estatuto jurídico idêntico ao do casamento civil.
A constitucionalização do instituto da união estável, contudo, é um verdadeiro entrave à efetiva tutela dos conviventes. Na medida em que, inclusive, prescreve a facilitação da conversão da união estável em casamento; parece pressupor uma diferença entre os regimes jurídicos.
Afinal, não faz sentido converter para algo que não seja diverso da situação anterior. A estratégia de constitucionalizar certos institutos de direito civil nem sempre é positiva, como já ressaltamos em outra oportunidade: “Até mesmo porque, como ressalta Torquato Castro Jr, a estratégia de constitucionalizar certos institutos de direito civil muitas vezes serve a propósitos conservadores, como se deu em relação à indissolubilidade do matrimônio, ou (mais recentemente) com a união estável ‘entre homem e mulher’ no texto da Constituição de 1988”.
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Por fim, sabemos que talvez fosse necessário garantir a possibilidade da celebração de contratos que permitam aos conviventes constituir uma união livre de certos esquemas jurídicos tais como os que são próprios do casamento. O exercício da autonomia privada em tais casos, logicamente, deve pressupor a inexistência de consideráveis desequilíbrios sociais e econômicos entre os conviventes; o que não parece corresponder a realidade de todos os casais.
É de se reconhecer, também, a necessidade de regras específicas para a questão da união estável entre pessoas que ainda mantém o vínculo jurídico do casamento, apesar de separadas de fato ou judicialmente. Consideramos, ao fim e ao cabo, que a mera declaração da inconstitucionalidade do artigo 1.790 sem a eliminação das outras assimetrias apontadas não corresponde a uma solução adequada, pois mantém os conviventes em uma situação de proteção jurídica deficiente em relação àqueles que contraíram casamento civil.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).
[1] ARNAUD, André-Jean. A importância da utopia comunitária dos anos 70 para o estudo do direito de família contemporâneo.
In: O direito traído pela filosofia. Tradução de Wanda Lemos Capeller e Luciano Oliveira. Porto Alegre: Safe, 1991, p. 126.
[2] LIMA, Maurílio Cesar de.
Introdução à história do direito canônico. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 174-175.
[3] ARNAUD, André-Jean. A importância da utopia comunitária dos anos 70 para o estudo do direito de família contemporâneo.
In: O direito traído pela filosofia. Tradução de Wanda Lemos Capeller e Luciano Oliveira. Porto Alegre: Safe, 1991, p. 127.
[4] ERICHSEN, Hans-Uwe. A eficácia dos direitos fundamentais na Lei Fundamental Alemã no direito privado.
In: GRUNDMANN, Stefan
et alii(orgs.).
Direito privado, constituição e fronteiras: encontros da Associação Luso-Alemã de Juristas no Brasil. 2 ed. São Paulo: RT, 2014, p. 22.
[5] MARTINY, Dieter. Family Law. In: REIMAN, Mathias; ZEKOLL, Joachim (eds.).
Introduction to German Law. 2 ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005, p. 255.
[6] MARTINY, Dieter. Family Law. In: REIMAN, Mathias; ZEKOLL, Joachim (eds.).
Introduction to German Law. 2 ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005, p. 255-256.
[7] MARTINY, Dieter. Family Law. In: REIMAN, Mathias; ZEKOLL, Joachim (eds.).
Introduction to German Law. 2 ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005, p. 255.
[8]Cf:
http://www.brasil.gov.br/educacao/2011/11/pais-tem-declinio-de-fecundidade-e-migracao-e-aumento-na-escolarizacao Acesso em: 21 de Outubro de 2016.
[9] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato.
Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 99.
[10] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de.
Tratado de direito privado – Parte Geral: Tomo IV. 2 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 20.
[11] SAVATIER, René. Réalisme et idéalisme en droit civil d’aujourd’hui: structures materielles et structures juridiques.
In:
Le droit privé français au millieu du XXe siècle: études offertes à Georges Ripert. Tome I. Paris: L.G.D.J., 1950, p. 75-76.
[12] COSTA FILHO, Venceslau Tavares; CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva. Prefácio.
In: COSTA FILHO, Venceslau Tavares; CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva (coords.).
A modernização do direito civil – Volume II. Recife: Nossa Livraria, 2012, p. 06.
Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.