26/09/2016 11:58 - Fonte: O Globo
Processo iniciado em 1978 só teve resolução nesta quinta-feira
BRASÍLIA – O Supremo Tribunal Federal (STF) bateu o martelo nesta quinta-feira em uma disputa judicial que já durava 38 anos e deu a um homem o direito de ser reconhecido oficialmente pelo pai biológico. Nascido de um relacionamento extraconjugal da mãe, ele obteve o direito de herdar os bens do pai genético, junto com os outros filhos que o pai tinha no casamento oficial. Também hoje, o tribunal fixou uma tese que abre a possibilidade de uma pessoa ter em registro civil o nome do pai biológico e do pai afetivo.
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”, declarou o tribunal. O texto aprovado em plenário não menciona explicitamente a possibilidade de dois pais em um registro, mas ministros do STF fazem essa interpretação. Se os cartórios se recusarem a fazer esse tipo de certidão, pode ser necessário haver nova regulamentação sobre o assunto.
A tese é fruto do julgamento concluído na quarta-feira, quando uma mulher obteve o direito de estampar no registro civil o nome do pai biológico e, como consequência, receber pensão alimentícia e herdar os bens dele. A mulher foi criada pelo marido da mãe, que revelou à filha somente na juventude que ela tinha outro pai. A filha recorreu à justiça para substituir o nome do pai socioafetivo pelo biológico na certidão de nascimento.
O STF atendeu o pedido. Segundo os ministros, o pai de sangue não pode se eximir das responsabilidades, mesmo quando o filho tiver sido criado e assumido oficialmente por outro homem. A tese tem repercussão geral – ou seja, os juízes de todo o país precisarão decidir da mesma forma em processos desse tipo.
Na sessão de hoje, o ministro Dias Toffoli chegou a sugerir que alguém só pode ser considerado pai se houver o registro formal em cartório. No caso, se o pai biológico aparecesse depois, seria possível haver um registro com dois pais. Mas prevaleceu a tese de que o pai socioafetivo pode ocupar essa posição mesmo que não seja pai oficialmente.
— A paternidade biológica ou socioafetiva não precisa ser formalizada. É possível a existência a dupla paternidade — afirmou Lewandowski, que recebeu o apoio da maioria do plenário.
No mesmo julgamento, o tribunal esclareceu que as obrigações da paternidade biológica continuam inexistentes no caso de adoções formais. Ou seja, o pai adotante passa a ser o pai de fato, interrompendo qualquer dever de assistência do pai genético. O mesmo acontece nos casos de reprodução assistida com o uso de banco de sêmen.
O processo analisado hoje pelo STF relata o drama de Antonio Carlos Risola. A mãe dele, Isolina, era casada com José da Silva Barbosa e teve um caso extraconjugal com Vicente Risola. Segundo o depoimento de testemunhas, o marido não a impedia de namorar, porque ele era “mais velho e cansado” e, “diante da impossibilidade física de ter relação sexual, fechava os olhos para o romance”. Ainda de acordo com o processo, Isolina era “moça nova e bonita” e passou a se relacionar com Vicente, “um homem vistoso e abastado”.
Quando Antonio Carlos nasceu, José e Vicente registraram o garoto, que passou a ter duas certidões de nascimento. Segundo testemunhas, o marido sabia que não era o pai, mas não questionou judicialmente. Vicente, por sua vez, tinha uma relação afetiva com o garoto. No testamento, Vicente tratou o filho como “afilhado” e pediu para os filhos do casamento oficial darem toda a assistência a Antonio Carlos. O pedido não foi atendido.
Antonio Carlos entrou com ação na justiça em 1978 para ser reconhecido como filho de Vicente. Como o antigo Código Civil estabelecia que os filhos nascidos no casamento eram presumidamente biológicos, a não ser que o pai questionasse isso judicialmente, os tribunais se recusaram a reconhecer Vicente como pai, mesmo com todas as evidências do processo. O antigo Código Civil também considerava ilegítimos os filhos tidos fora do casamento.
O caso chegou ao STF em 1986. Depois de sucessivas idas e vindas, o capítulo final da história só foi escrito na tarde desta quinta-feira, quando o plenário reverteu a decisão de instâncias inferiores e permitiu que Antonio Carlos fosse considerado herdeiro de Vicente.
A demora no desenrolar da história impediu que o final fosse feliz: hoje, Vicente, José e Antonio Carlos já morreram. Portanto, eventuais herdeiros do rapaz poderão receber os bens de Vicente. Segundo o processo, as sucessivas derrotas judiciais deixaram Antonio Carlos deprimido e, em junho de 1991, ele se suicidou. Ao votar, o ministro Edson Fachin lamentou a demora na solução do caso.
— Diz-se que, às vezes, a justiça tarda e falha. Mas, se tardar, não deveria falhar. A petição inicial data de 30 anos atrás. Quem sabe agora o tribunal estará fazendo justiça ao caso concreto — afirmou Fachin.
Ao votar, a relatora, ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, afirmou que o atual Código Civil não faz distinção entre os filhos tidos no casamento ou fora dele. Diante das evidências do processo, a ministra declarou o vínculo familiar entre os dois.
— Não vejo como se deixar de reconhecer vínculo de paternidade entre o filho e o verdadeiro pai — afirmou.
Para Anderson Schreiber, advogado e professor de Direito Civil da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a orientação dada pelo STF foi acertada e pode ter desdobramentos para além da paternidade.
— Quando falamos em multiparentalidade, falamos tanto do pai quanto da mãe. Embora a decisão não tenha expressamente tratado de mães, ela se aplica também à maternidade — aponta Schreiber. — Uma outra questão que o Supremo não detalhou, mas que também é uma consequência lógica dessa decisão é: se o filho morre antes dos pais e se ele tem direito a herança dos dois pais, os dois pais também têm direito a herança do filho. Agora como divide essa herança, que, anteriormente, era baseada em 50% para a mãe e 50% para o pai? É um problema a se resolver. A decisão do Supremo dá um norte e cria um novo paradigma do direito de família. Tem uma série de repercussões, como essa, que vamos ter que discutir caso a caso na medida que elas surjam.