16/09/2016 10:54 - Fonte:
A paternidade socioafetiva é o vínculo que se estabelece em virtude do reconhecimento social e afetivo de uma relação entre um homem e uma criança como se fossem pai e filho. Nessa espécie de paternidade não há vínculo de sangue ou de adoção.
Até 2002 era reconhecido somente o parentesco consanguíneo ou por adoção. Foi o Código Civil vigente desde o ano de 2013 que trouxe a inovação e merece todos os elogios, ao prever em seu art. 1.593 que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem". Assim, a nova regra compreende também a paternidade socioafetiva, cujo vínculo não advém de laço de sangue ou de adoção, mas da existência da afetividade entre um homem e uma criança e do reconhecimento social da existência de relação entre os dois que seja havida como de paternidade. O parentesco socioafetivo tem os mesmos efeitos do vínculo consanguíneo e da adoção, durante a vida - direito de guarda, direito de ter a companhia do filho ou vulgarmente chamado direito de visitas, dever de educação e dever de sustento ou obrigação alimentar - e sucessórios - direitos hereditários, incluindo o direito à legítima. A paternidade socioafetiva é comum naqueles casos em que um homem registra como seu filho de outra pessoa por estar ligado, por vínculos de afeto, à genitora da criança. Trata-se de adoção irregular, que lastimavelmente ganhou o nome de "adoção à brasileira". É lastimável que essa expressão seja usada para definir esse registro irregular de um filho, como se os brasileiros praticassem sempre atos ilícitos. Essa prática tipifica inclusive um crime, já que é uma declaração falsa de paternidade biológica. Mas, como não há má intenção do homem ao registrar aquele filho como se seu fosse, o reconhecimento dessa espécie de paternidade passou a ser possível. Os casos de reconhecimento da paternidade na adoção irregular que foram levados ao Judiciário iniciou-se pelas situações em que o homem falece e os seus herdeiros de sangue querem desfazer aquele registro irregular, para não terem de dividir a herança paterna. Além disso, se não houvesse a paternidade socioafetiva, aquele homem poderia, após o fim do relacionamento amoroso com a mãe da criança, pleitear o desfazimento dessa relação de paternidade por meio da anulação do registro civil. Não pode este pai tratar este filho como se fosse algo descartável. Daí a importância da inovação trazida pelo Código Civil de 2002. Há, ainda, a hipótese de parentesco socioafetivo quanto ao chamado "filho de criação", em que não existe propriamente o registro da paternidade do pai socioafetivo, mas aquela pessoa é criada como se fosse filho. Para o reconhecimento da paternidade socioafetiva é necessário o preenchimento de determinados requisitos, que passam a ser detalhados. Em primeiro lugar, é necessário que não exista qualquer vício de consentimento no registro do filho alheio como próprio, isto é, o pai socioafetivo não pode ter sido enganado, devendo ter a plena consciência de que está registrando filho que não é seu. Essa é a interpretação do Enunciado n. 339 da IV Jornada de Direito Civil: "A paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho". Em segundo lugar, o pai socioafetivo, para ser havido como tal, deve tratar aquela criança como se de filho seu se tratasse (tractatus), sendo tido pela sociedade como seu verdadeiro pai (reputatio). Nesse sentido o Enunciado n. 519 da V Jornada de Direito Civil: "O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais". É necessário mencionar, no entanto, que não cabe o duplo registro de paternidade no ordenamento jurídico brasileiro, também chamado de multiparentalidade. A atribuição dos mesmos direitos e deveres a dois pais, o socioafetivo e o biológico, não é recepcionada pelo sistema jurídico, posição corroborada por nossa jurisprudência majoritária. São inúmeros, em virtude da abertura dada pelo Código Civil, os casos de embate entre a paternidade socioafetiva e a paternidade biológica. Pai biológico que pretende ver reconhecido o vínculo após ter permanecido inerte sobre o fato de que o registro de nascimento de seu filho foi feito com a indicação de outro pai; irmão que pretende ver desconstituído o registro civil da irmã com relação ao pai já falecido; pai biológico que pretende ver desconstituída a paternidade socioafetiva sob a alegação de falsidade do registro; filho socioafetivo que pleiteia a anulação do registro civil em que consta o pai socioafetivo para ver reconhecido o vínculo com seu pai biológico; marido ou companheiro da mãe que não registra filho desta como se fosse seu, mas que constitui vínculo afetivo com a criança. Pode-se imaginar o caos que se instalaria se pudesse haver a multiparentalidade, com o registro de um filho como tendo dois pais. Afinal, se a mãe da criança se casasse com dois ou mais homens durante o crescimento do filho, esta pessoa teria pelo menos três pais? Diante da existência de laços socioafetivos que criem vínculo parental, com os efeitos daí decorrentes, surge a questão da prevalência da paternidade socioafetiva sobre a paternidade biológica. Em todos esses casos não é possível determinar a priori a prevalência de uma das espécies de paternidade sobre a outra, devendo ser analisados os interesses envolvidos, para que se conclua sobre a prevalência ou não de uma sobre a outra. É bem verdade que o Código Civil não chegou a regular detalhadamente essas situações de socioafetividade, mas não o fez para possibilitar a análise e a melhor solução em cada caso concreto. Em recente caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo, no Recurso de Agravo de Instrumento nº 2225968-92.2015.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Carlos Alberto Garbi, decidiu pela prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica, afirmando que "não há como desconstituir o vínculo paterno [anterior], pois ainda que posteriormente a criança tenha passado a residir com seu pai biológico, é certo que o agravado conferiu ao menor durante todo esse período tratamento de filho", destacando que a paternidade não se baseia apenas no fato biológico. Não obstante, menciona o acórdão, também, que o pai biológico "ao que tudo indica, manteve bom convívio com o menor, lhe dispensando carinho, atenção e cuidado". Não há dúvida de que o laço de sangue entre o genitor e o filho nem sempre corresponde ao laço afetivo e social, já que a condição paterna ultrapassa a mera geração biológica. Tanto não há como ser estabelecida sempre a prevalência de uma espécie de paternidade sobre a outra que não se pode sempre deduzir que da geração de vínculos emocionais e afetivos exsurja obrigatoriamente a relação de paternidade. Está em tramitação no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Recurso Extraordinário 898.060-SC, com repercussão geral reconhecida, cujo tema é a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica. A Associação de Direito de Família e das Sucessões - ADFAS, atua como amicus curiae nesse recurso, defendendo a não atribuição de efeito vinculante à prevalência de uma das espécies de paternidade no caso específico sob apreciação dessa Corte Suprema. O efeito vinculante levaria a tornar aplicável em todos os casos a paternidade biológica ou a socioafetiva. Sempre prevaleceria a biológica, ou sempre prevaleceria a socioafetiva. Em suma, no confronto entre a paternidade biológica e a afetiva deverá prevalecer aquela que melhor acolha o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), bem como o princípio do interesse primordial da criança e do adolescente (CF, art. 227 e ECA, art. 3º). As variantes de cada caso são muitas, de modo que não convém colocar amarras prévias na prevalência de uma ou outra espécie de paternidade. A eleição da paternidade socioafetiva ou da biológica deve sempre depender da análise do caso concreto. *Regina Beatriz Tavares da Silva é presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões), Doutora em Direito pela USP e advogada. |