A súmula em questão foi editada em sessão plenária de 3 de abril de 1964 e visava corrigir uma distorção do Código Civil de 1916 no que toca à interpretação e aplicação do artigo 259 daquele diploma jurídico, segundo o qual “embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento”.
Isso significava que, no regime de separação total convencional os aquestos, em princípio, sempre se comunicavam. A regra possuía nítido intuito protetivo da mulher
[3], de forma que o Supremo Tribunal Federal, ao estender-lhe os efeitos, apenas ampliou essa mesma finalidade de proteção.
O doutrinador e professor Flávio Tartuce, com grande esmero, em coluna no Migalhas
[4], advoga a tese de que a referida súmula pode ser afastada por pacto antenupcial. O pensamento em si é brilhante e resolve uma serie de distorções do sistema.
Em primeiro lugar, a inafastabilidade da incidência da súmula 377 é, por si só, questionável, pois diz respeito à extensão dos efeitos de dispositivo legal totalmente revogado. Ademais, se o regime é de separação de bens, não faz muito sentido que, em pleno século XXI, os efeitos jurídicos do regime não possam, com base na autonomia da vontade, corresponder plenamente à sua nomenclatura, desde que não impliquem em danos a terceiros ou enriquecimento indevido de um dos cônjuges à custa do outro. De fato, não foi outra a
ratio decidendi do próprio Supremo Tribunal Federal ao decidir que, na separação total convencional, os aquestos não se comunicam se assim foi convencionado entre os cônjuges
[5]. Tampouco parece razoável que o maior de setenta anos, ainda que não componha qualquer união estável, seja obrigado a suportar o regime com comunicação de aquestos.
De fato, a redação original do que veio a ser o artigo 1.641 do Código Civil de 2002 buscava eliminar quaisquer dúvidas acerca da comunicabilidade dos aquestos no regime da separação obrigatória de bens
[6]. Isso porque o Projeto de Lei nº 634/1975 já determinava que não haveria comunhão dos aquestos no regime da separação obrigatória de bens no casamento
[7]. O texto original, contudo, foi alterado por meio de emenda na fase final de tramitação na Câmara dos Deputados, a fim de suprimir, em atenção ao disposto na súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, a menção expressa à incomunicabilidade dos aquestos
[8].
Esses apontamentos são extremamente relevantes. Porém, o Superior Tribunal de Justiça, em decisões antigas e recentíssimas, vem mantendo a orientação de que, no regime de separação obrigatória, comunicam-se os aquestos
[9].
Algumas questões merecem ser ponderadas. A primeira diz respeito à possibilidade de efetivamente transmutar, para todos os efeitos, a separação obrigatória em convencional mediante pacto antenupcial. Por maior esforço intelectual que se faça, não parece possível alterar a natureza jurídica do regime por ato de vontade. A separação obrigatória é norma de ordem pública que vem estatuída no comando legal inscrito no artigo 1.641 do Código Civil de 2002, que, por força da redação da lei 12.344 de 9 de dezembro de 2010, ampliou a idade a partir da qual se torna obrigatório o regime de separação de sessenta para setenta anos.
Nesse quesito, o regime de separação obrigatória está em dissonância com o regime de separação convencional, previsto nos artigos 1.687 e 1.688 do Código Civil de 2002. Evidentemente, não há problema em se fazer pacto antenupcial no regime de separação obrigatória de bens. Como bem menciona o professor Flavio Tartuce, a única restrição seria a vedação ao desrespeito às regras cogentes de ordem pública
[10]. Dessa sorte, o próprio tabelião de notas pode lavrar o pacto antenupcial daqueles que, com mais de setenta anos, resolvam casar sem antes ter vivido em união estável.
Não parece possível, contudo, que, em virtude desse pacto, o regime se converta em separação total convencional. Ter-se-á apenas o regime da separação obrigatória com pacto antenupcial. Isso significa que a vontade não muda a essência das coisas. Se o regime determinado por lei for o da separação obrigatória, continuará a sê-lo, ainda que seja regulamentado por pacto antenupcial.
Dessa sorte, o fato de as partes terem celebrado pacto antenupcial não converte o regime da separação obrigatória de bens em regime de separação convencional, pois implicaria em burla ao sistema que, por razões de ordem pública, foi instituído pelo legislador. Note-se que a hipótese de casamento de pessoa maior de setenta anos é a única que não admite a mutabilidade do regime de bens, na medida em que a causa da obrigatoriedade do regime de separação não cessa.
O regime da separação obrigatória é ontologicamente distinto do regime da separação convencional, e não só no que toca à comunicação dos aquestos
[11]. Há também a questão fundamental da outorga uxória ou marital, ou seja, da vênia conjugal, que está presente no regime da separação total obrigatória, porém não no regime da separação total convencional, já que está afastada pelo artigo 1.687 do Código Civil.
Caso o maior de setenta anos realmente pudesse comparecer no Tabelionato de Notas e lavrasse uma escritura de separação total convencional, algumas questões imediatamente poderiam aflorar. Poder-se-ia pensar em comunicação parcial dos aquestos com ou sem vênia conjugal ou ainda exclusão total da súmula 377 com manutenção de vênia conjugal. Na medida em que se defende a tão sonhada autonomia privada em detrimento do dirigismo
[12] dos pactos, criar-se-iam várias subfiguras jurídicas.
Respeitado o pensamento do brilhante professor, foi editado o Provimento nº 08/2016 pelo Egrégio Tribunal de Justiça de Pernambuco que determinou aos Oficiais de Registro Civil do Estado de Pernambuco que passasse a cientificar nubente com mais de setenta anos e que não vivia em união estável da possibilidade de afastamento da incidência da súmula 377 do STF por meio de pacto antenupcial.
É bom lembrar que o registrador, ao contrário do notário, só pode fazer ou deixar de fazer aquilo que a lei estritamente determina. Muito embora a lei determine que deva cumprir código de normas, provimentos e resoluções de autoridade superior, no caso, uma série de questões exsurge.
A primeira delas diz respeito a orientar a parte a fazer pacto antenupcial, ou seja, praticar ato notarial cuja eficácia é no mínimo questionável. Quem é que garante que se futuramente houver qualquer litígio o Tribunal ou STJ agasalharão tese doutrinária?
Em segundo lugar, estar-se-á afrontando pensamento pacífico do STJ de que no regime de separação obrigatória incida súmula 377 do STF.
Em terceiro lugar, a outra serventia extrajudicial a sofrer reflexos imediatos do referido provimento são os tabelionatos de notas. Como ficam os tabeliães que entendem inafastável a súmula 377 do STF? Como ficam os tabeliães que entendem que em caso de litígio poder-se-á questionar a eficácia do pacto antenupcial? Existe ainda uma terceira serventia extrajudicial a promover imediato efeito do referido provimento, que são os ofícios de registro de imóveis. Como os oficiais de referida serventia devem proceder diante do requerimento de registro do referido pacto no livro 3 com averbação na matrícula do livro 2? Como deve constar essa averbação? Separação obrigatória com pacto ou separação total convencional?
Por fim, como ficará esses oficiais de registro de imóveis e questão da vênia conjugal? Devem dispensar ou exigir?
Ficam aqui pequenas considerações de quão importante e complexa é a atividade notarial e registral e quão difícil é a operabilidade de um sistema à luz de doutrina e jurisprudência.
[1] J. C. Moraes Salles,
Usucapião de bens imóveis e móveis, 3
a ed., São Paulo, RT, 1995, p. 30; F. C. Pontes de Miranda,
Tratado de Direito Privado – Tomo XI – Direito das Coisas: Propriedade. Aquisição da Propriedade Imobiliária, 2
a ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1971, p. 117.
[2] V. F. Kümpel, A liberdade de escolha de regime de bens no Código de 2002, Portal Migalhas, 17 mar. 2015, in http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI217321,31047-A+liberdade+de+escolha+de+regime+de+bens+no+Codigo+de+2002 [Acesso em 11-06-16].
[3] W. B. Monteiro, Curso de Direito de Família – Volume 2, 37ª ed., São Paulo, Saraiva, 2004, pp. 153 a 154.
[4] F. Tartuce, Da possibilidade de afastamento da súmula 377 do STF por pacto antenupcial, 25 mai. 2016, in http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI239721,61044-Da+possibilidade+de+afastamento+da+sumula+377+do+STF+por+pacto [Acesso em 11-06-16].
[5] Nesse sentido, cf. o voto do Min. José Carlos Moreira Alves in STF, 2ª Turma, RE 80.496, Rel. Min. Thompson Flores, j. 29-11-1977: “(...) é indubitável que o regime de separação de bens se distingue em regime de separação convencional e regime de separação legal, também denominado regime de separação obrigatória. Por outro lado, da simples leitura do art. 259, verifica-se que o regime da separação convencional se subdivide em regime de separação convencional absoluta e regime de separação convencional relativa. Absoluta, quando constar do pacto antenupcial que os nubentes estipulam a separação de todos os bens passados, presentes e futuros; relativa, quando do pacto não constar essa cláusula de exclusão de bens futuros ou adquiridos posteriormente ao casamento (...)”. Embora não haja, no Código Civil de 2002, dispositivo correspondente ao citado no voto acima, ainda vigora o princípio segundo o qual não se comunicam os aquestos se houver cláusula expressa nesse sentido no pacto antenupcial, salvo para impedir enriquecimento indevido e mediante comprovação do esforço comum por parte do cônjuge pleiteante, cf. Diniz, Maria Helena,
Curso de Direito Civil – Direito de Família, vol. V, 25ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 194 e Rodrigues, Sílvio,
Direito Civil – Direito de Família, vol. 6, 28ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, pp. 192-194.
[6] Diniz, Maria Helena,
Curso de Direito Civil – Direito de Família, vol. V, 25ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, pp. 195-196. É interessante notar que a autora, com base na vedação ao enriquecimento indevido, se declara favorável à comunicabilidade dos aquestos no regime da separação obrigatória de bens, mas apenas os que forem adquiridos onerosamente na constância do casamento e forem o resultado do esforço comum. O principal resultado da aplicação da mencionada súmula 377, na visão da autora, é afastar a necessidade de demonstrar o concurso de esforço na aquisição desses bens.
[7] O referido Projeto de Lei nº 634/1975 determinava, no artigo 1.696: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento, sem a comunhão de aquestos”. O texto permaneceu inalterado nos artigos 1.669 e 1.653 do Projeto de Lei da Câmara nº 118/1984 e do Projeto de Lei nº 634-C/1975 [1998], respectivamente.
[8] A supressão da parte final do dispositivo ocorreu tendo em vista que “em se tratando de regime de separação de bens, os aqüestos provenientes do esforço comum devem se comunicar, em exegese que se afeiçoa à evolução do pensamento jurídico e repudia o enriquecimento sem causa, estando sumulada pelo Supremo Tribunal Federal (Súmula 377)”, cf. Passos, Edilenice e Oliveira Lima, João Alberto,
Memória Legislativa do Código Civil – Quadro Comparativo, vol. I, Brasília, Senado Federal, 2012, p. 530.
[9] AGRAVO REGIMENTAL. SEPARAÇÃO LITIGIOSA. PARTILHA DE BENS. AQUESTOS. ESFORÇO COMUM. COMUNHÃO. 1.- No regime da separação total de bens, à mingua de cláusula excludente expressa no pacto antenupcial, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento pelo esforço comum dos cônjuges. Precedentes. 2.- Agravo Regimental improvido.
(STJ - AgRg no REsp: 1211658 CE 2010/0159453-0, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 16/04/2013, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/05/2013)
[11] DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. UNIÃO ESTÁVEL ENTRE SEXAGENÁRIOS. REGIME DE BENS APLICÁVEL. DISTINÇÃO ENTRE FRUTOS E PRODUTO.
1. Se o TJ/PR fixou os alimentos levando em consideração o binômio necessidades da alimentanda e possibilidades do alimentante, suas conclusões são infensas ao reexame do STJ nesta sede recursal.
2. O regime de bens aplicável na união estável é o da comunhão parcial, pelo qual há comunicabilidade ou meação dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união, prescindindo-se, para tanto, da prova de que a aquisição decorreu do esforço comum de ambos os companheiros.
3. A comunicabilidade dos bens adquiridos na constância da união estável é regra e, como tal, deve prevalecer sobre as exceções, as quais merecem interpretação restritiva, devendo ser consideradas as peculiaridades de cada caso.
4. A restrição aos atos praticados por pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos representa ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.
5. Embora tenha prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável na união estável entre sexagenários é o da separação obrigatória de bens, segue esse regime temperado pela Súmula 377 do STF, com a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da união, sendo presumido o esforço comum, o que equivale à aplicação do regime da comunhão parcial.
6. É salutar a distinção entre a incomunicabilidade do produto dos bens adquiridos anteriormente ao início da união, contida no § 1º do art. 5º da Lei n.º 9.278, de 1996, e a comunicabilidade dos frutos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão, conforme previsão do art. 1.660, V, do CC/02, correspondente ao art. 271, V, do CC/16, aplicável na espécie.
7. Se o acórdão recorrido categoriza como frutos dos bens particulares do ex-companheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não como produto de bens eventualmente adquiridos anteriormente ao início da união, opera-se a comunicação desses frutos para fins de partilha.
8. Recurso especial de G. T. N. não provido.
9. Recurso especial de M. DE L. P. S. provido.
Processo REsp 1171820 / PR - RECURSO ESPECIAL 2009/0241311-6 - Relator Ministro SIDNEI BENETI (1137) - Relatora para Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI - Órgão Julgador -TERCEIRA TURMA - Data do Julgamento 07/12/2010 - Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2011 - LEXSTJ vol. 262 p. 149
[12] F. A. M. Barros,
Manual de direito civil - Direito das Obrigações e Contratos - Volume 2, São Paulo, Método, 2005, p. 215.