23/05/2016 11:12 - Fonte: ConJur
O afeto de uma relação é construído na medida da sua inteira disponibilidade. “Valor, respeito e apego”, diria Joseph Raz, filósofo do Direito no Balliol College, de Oxford, diante da universalidade do tema e em experiência de singularidades. Quando, porém, a construção afetiva sujeita-se a determinados efeitos jurídicos, cumpre verificar em quais medidas há de ser compreendido esse afeto, espontâneo e construído na relação existente. É o caso do padrastio, onde a figura do padrasto não implica na consequente figura de pai socioafetivo do seu enteado e em não ser assim também não implica na inexorável ausência de afeição na relação com aquele.
Padrasto ordinariamente representa o pai substituto, no contexto familiar, quando quem não sendo o pai biológico, presume-se receptor de responsabilidades paternais, em face de união existente com aquela(e) que já tenha filhos, havidos de união pretérita. Ou seja, perante os enteados. Mais precisamente, enteados aqueles “nascidos antes” (natus) do relacionamento então vigente.
Poderá ocorrer, na hipótese, uma paternidade por opção, em manifestação espontânea de uma relação paterno-filial quando o padrasto exercita o papel do pai como guardião e protetor, nos plano afetivo-emocional e socio-jurídico, a tanto admitir possa ele se contrapor à figura do pai biológico. Essa ocupação de papéis (pai-filho x filho-pai) fundados no afeto existente entre eles, como se pai e filho fossem por vínculo genético, edifica uma realidade que tem sido interpretada juridicamente, como a socioafetividade levada ao status de uma paternidade manifesta, aquela que mais se identifica em sua substância, porque consolidada e reconhecida pela afeição subjacente que a caracteriza.
Em situação adversa, poderá ocorrer, todavia, uma relação incolor, inodora e inerte, onde o vínculo existente será apenas o vínculo civil, ou conforme a leitura do artigo 1.595 do Código Civil, por mera ficção jurídica, um vínculo por afinidade, sem implicações maiores de relações de afeto. O padrasto não declina de sua condição de terceiro, não pretendendo assumir a qualidade substituta de pai, colocando-se apenas expectador de um núcleo familiar contido na relação originária.
No ponto, bem de ver que o artigo 1.636 do Código Civil contribui (infelizmente), nessa linha, ao afasta-lo de qualquer interferência sobre o exercício do poder familiar, cuja regência continua exclusivamente pertencente aos pais, nada obstante esteja ou possa estar o padrasto, em boa medida, a prestar apoio à formação adequada dos enteados. Ou seja, falta-lhe o devido papel jurídico diante da realidade jurígena das famílias reconstituídas (reconstitutedfamily) ou chamadas famílias recompostas (blendedfamily), quando os recasamentos o colocam em cena diante da nova família, protagonista que nele se presta a um desempenho efetivo.
Com efeito, acentua-se, de saída, que as novas configurações familiares estão a exigir, inevitavelmente, inegável moldura jurídica que sustente os vínculos afetivos ou meramente civis existentes entre padrastos e enteados, a se entender, de um lado, que (i) o padrastio não constitui, em modo, uma “paternidade instantânea”, com deveres e direitos próprios e de outro (ii) está a exigir, sempre, uma “dinâmica de recomposição da linha de substituição utilizada: integração ou exclusão” (Queiroz Rosalino, 2013).
Dentro do novo sistema familiar, importa, antes, a definição do padrasto como elemento e pressuposto de uma multiparentalidade exsurgente, para o efeito jurídico do seu reconhecimento adequado, a tempo de não negando a paternidade biológica precedente estabelecer, em urgente conveniência, o aprendizado do seu papel jurídico.
Lado outro, significativos julgados estão a editar indicadores iniciais para um Estatuto Jurídico do Padrastio, quando, exemplificativamente, admitem:
I) a legitimidade ativa do padrasto para o pleito de destituição do poder familiar em procedimento contraditório, diante do seu legitimo interesse de adotar o filho do outro cônjuge ou companheiro em modalidade da adoção unilateral prevista no parágrafo único do artigo 1.626 do CC (STJ – Terceira Turma, REsp. nº 1.106.637-SP, Rel. min. Nancy Andrighi, j. em 01.06.2010);
II) a legitimidade ativa de enteado, diante do reconhecimento da filiação socioafetiva entre vitima e aquele, para o pagamento de seguro DPVAT (TJMG, 3ª Câm,. Cível, Apel. Cível nº 1.0384.08.071230-8/001, Rel. Des. Albegaria Costa, j. em 09.02.2012);
III) a prevalência do caráter socioafetivo da convivência do falecido (pai registral) com o filho da companheira, a elidir falsidade ideológica do registro de nascimento e tornar incabível pretensão anulatória do ato pretendida por herdeiros (STJ – 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha).
Juridicidades
Às relações afetivas exige-se que sejam escritas com história própria e pessoal, suficientes ao seu efetivo reconhecimento e em obtenção dos efeitos jurídicos pertinentes; por isso que, “nas questões em que presente a dissociação entre os vínculos familiares biológico e socio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramento devem pautar as decisões (STJ - Terceira Turma; REsp. 2006/0070609-4-SP, rel. min. Nancy Andrighi, j. em 17/5/2007). Induvidosamente que sim.
Nesse conduto, o protagonismo do padrasto nas famílias recompostas constitui situação jurídica indeclinável, porquanto ele e enteado colocam-se integrantes das mesmas relações familiares, nomeadamente vivenciadas por ambos e entre si. Designadamente, em contexto da vida em comum, é o terceiro que se coloca em convivência diante da autoridade parental originária.
Mais ainda se acentua o protagonismo quando o padrasto assume uma paternidade fática sobre o filho da companheira, de pai ignorado ou não figurante do registro civil. Todas as peculiaridades de caso revelam, portanto, um universo normativo que se exige mais dinâmico, a observar as situações especificadas.
Não há negar que o direito carece contextualizar, no plano jurídico, as famílias recompostas (stepfamilies), sempre mais numerosas, para assinalar, com as devidas adequações, a figura do padrastio. Primeiros ensaios nessa ordem ocorreram com a lei francesa de 04 de março de 2002, contemplando a intervenção de terceiros na vida das crianças, e com maior destaque, o ordenamento jurídico inglês, que disciplinou com exaustividade a questão, institucionalizando o papel do padrasto.
Interessante observar a tendência de uma repartição de responsabilidades parentais, entre pais e padrastos que conduzem, com boa nota, à pluriparentalidade. Significativa, nesse alcance, a Civil Partnership Bill, lei de parceria civil de 2004, do Parlamento do Reino Unido, que entre diversas disposições, estabelece a “responsabilidade de razoável manutenção de um parceiro e seus filhos”.
As relações presentes de conjugalidade ou de convívio do terceiro com o genitor dos filhos havidos anteriormente, cominam com uma inexorável responsabilidade daquele, em padrastio, com os filhos do outro parceiro, notadamente no plano das obrigações alimentares quando esses se achem inseridos no núcleo familiar superveniente e durante o período de convívio.
Ou seja, as obrigações alimentares são inerentes no curso de tempo da união e cessam com a sua dissolução, como, exemplificativamente, restringe o direito argentino em seu novo Código Civil (Lei 26.994/2014), vigendo desde 1 de agosto de 2015:
"Artigo 676. Alimentos. La obligación alimentaria del cónyuge o conviviente respecto de los hijos del otro, tine caráter subsidiario. Cesa este deber em los casos de disolución del vínculo conyugal o ruptura de la convivência."
As responsabilidades parentais do padrastio ganham, todavia, maior relevo, quando os enteados perdem o genitor com o qual convivia o padrasto, impondo, com efeito, a assunção da responsabilidade plena, mais ainda a saber da inexistência de outros familiares diretos e/ou do próprio pai biológico.
Anota-se que o artigo 2.009, 1., “f”, do Código Civil português ao referir sobre pessoas obrigadas a alimentos, colocam vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada, “o padrasto e a madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste”.
Aspectos relevantes ganham lugar no trato da repartição de responsabilidades parentais para incluir o terceiro, como o padrasto quase-parente, pai-substituto (de ocasião ou não), tudo a exigir latitudes maiores de previsão legislativa.
Em sua obra “Direito Civil. Famílias” (2011), Paulo Lobo refere ao artigo 1.687, “b” do Código Civil Alemão (BGB — Bürgerliches Gesetzbuch), em que é permitido ao padrasto e à madrasta, o “direito de codecisão com seu cônjuge nas questões da vida diária do filho, se aquele(a) detiver a guarda unilateral”, a depender do comum acordo com o outro genitor. Ele cita a doutrina de Wilfried Schluter que denominou situações que tais como o exercício de um “pequeno direito de guarda”.
Conclusões
Pois bem. Malgrado o que dita o artigo 1.636 do nosso Código Civil, urge que seja estimulada, diante de famílias recompostas, a aplicação de planos de multiparentalidade, com a homologação judicial, ao tempo da formação ou da consolidação do padrastio.
Para além disso, por principal, um estatuto jurídico se faz necessário e exigível para dimensionar todos os níveis de relações do padrastio, contemplando, no mais elevado espectro e na melhor forma possível, a exemplo do direito britânico, as situações vivenciais e de convivências, a definir responsabilidades parentais e socioafetividades subjacentes.
A obra de Silvia Tamayo Haya (Editorial Reus, Madrid. 2009) sob o título El estatuto jurídico de los padrastros. Nuevas perspectivas jurídicas trouxe expressiva contribuição ao tema, ao defender a elaboração de ordenamentos próprios.
Lado outro, significativo acórdão do STJ em ilustrando determinada situação fática, serve também a cogitar um ordenamento adequado, com o proveito importante da jurisprudência que tem sido construída. Vejamos:
"As peculiaridades do caso, que revelaram a ausência de comprovação da existência de relação afetiva entre o falecido e seu padrasto e o curto tempo de convivência familiar entre ambos, justificam a fixação de verba indenizatória em favor deste último em montante substancialmente inferior ao arbitrado para a genitora do menor, sendo obstada sua revisão, na estreita via do recurso especial, em virtude da inafastável incidência da Súmula 7/STJ. (STJ – 3ª Turma, REsp. 1.201.244, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 5/5/2015)."
As dimensões da afetividade no padrastio colocam-se como outro capítulo a merecer doutrina e legislação pertinentes. O padrasto vezes outras não pretende substituir o pai genético do enteado ou caracterizar com largueza vínculos paternais socioafetivos marcantes. Mas tais circunstancias não o eximem de determinados deveres jurídicos.
Com pertinência, Silvio Romero Beltrão (2015) tem lecionado que o padrasto, mesmo não detendo maiores vínculos de afeto, não poderia, para eximir-se de uma suposta sociopaternidade, atuar sem exação dos deveres mínimos de apego e de proteção, sob pena de obrigar-se a posições de manifesta desafeição, o que não se coaduna com os princípios de respeito e de solidariedade aos enteados. Ele indica a alternativa do reconhecimento espontâneo da paternidade socioafetiva, oportunizado e incentivado desde a edição do Provimento 9/2013, de 2 de dezembro de 2013, da Corregedoria Geral de Justiça de Pernambuco, de nossa autoria enquanto ali no exercício interino, e seguido por outras Corregedorias. O normativo destina-se à admissão administrativa da declaração da paternidade socioafetiva, em registro civil, independente de processo judicial, sobre pessoas (enteados, principalmente) que se achem registradas sem a paternidade estabelecida. Diz ele, então: quem não exercitar a faculdade, não poderá ser havido como pai socioafetivo.
Aliás, mesmo o emprego da Lei 11.924, de 17 de abril de 2009, que altera o artigo 57 da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), para autorizar o enteado ou a enteada a adotar o nome da família do padrasto ou da madrasta, não implica em efeitos jurídicos extensivos à instituição automática da paternidade socioafetiva.
Certo é que a aceitação fática do encargo de uma família recomposta, com filhos do companheiro ou do cônjuge, importa ao padrasto responsabilidades consentâneas com a moderna doutrina do child of the family, ou seja, a criança da família deverá estar, sempre, no centro das afetividades que devem presidir as relações da nova família. Em ser assim, o padrastio tem o seu protagonismo certo. Uma razão a mais para a edição de um estatuto jurídico sobre ele.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), onde coordena a Comissão de Magistratura de Família.
Fonte: Conjur