11/09/2015 12:30 - Fonte:
Uma vez habilitado o referido casamento, é extraído certificado de habilitação , obtendo as partes autorização para celebrá-lo na própria serventia em questão.
Outra pérola do Estatuto do Deficiente está na nova redação dada ao artigo 1.550 do Código Civil, que transformou o parágrafo único em parágrafos 1º e 2º. Passa a ser a seguinte redação:
É anulável o casamento:
§ 2º A pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio do seu responsável ou curador.
Comentando o dispositivo legal esclarece o professo Simão a atrocidade que é o adjetivo "núbia". O referido vocábulo deriva do latim nubile1que significa o atingimento de idade legal mínima para contrair núpcias, ou seja, estra pronto para casar-se, ter aptidão para o casamento (art. 1.517/CC). Não sofre flexão por gênero, sendo por conseguinte uma atrocidade falar, como fez nosso onomaturgo2 platônico, ao mencionar a "idade núbia".
Se o equívoco fosse apenas ao que toca à língua portuguesa, nenhum mal haveria. Porém, as implicações jurídicas são de arrepiar! O dispositivo garante o amplo poder matrimonial do deficiente mental e intelectual. Nessa mesma linha de raciocínio, operou-se a revogação expressa do artigo em seu inciso I, de forma que não será mais nulo casamento contraído pelo "enfermo mental", sem o necessário discernimento para os atos da vida civil.
Para garantir a efetividade do disposto a comento, somos obrigados a transcrever o artigo 6º do Estatuto que afirma não ser a deficiência mental óbice à plena capacidade civil para:
a) constituir casamento e união estável;
b) exercer direito à guarda;
c) exercer direito à tutela e curatela;
d) ter amplos poderes de adotar.
Tomamos a liberdade de apresentar apenas alguns direitos sob o aspecto familiar. A grande questão a mesma de sempre, como pode alguém com nenhum poder de autodeterminação exercer todos esses direitos?
Aqui é bom recorrermos à literatura técnica para informarmos os graus de deficiência mental e o que cada um propicia ao titular, já que há retardo mental leve (F70), moderado (F71), grave (F72), profundo (F73), não especificado (F79), dentre outros, com subdivisões em cada nível3.
O problema não está propriamente em exercer todos esses direitos acima elencados. O problema está em como proteger essa pessoa sujeita à condição de incapaz, bem como ao tutelado, curatelado e adotado que dependem dessa pessoa para o pleno desenvolvimento harmônico determinado pelo artigo 227, caput da Constituição Federal.
É bom lembrar que a criança, o adolescente e o jovem devem ser protegidos com absoluta prioridade. Como um magistrado poderá outorgar guarda, tutela, curatela e adoção para alguém que precisa desses institutos para si próprio? Como é possível que a lei determine que deficiência mental não afeta a plena capacidade civil, se de fato afeta? Como alguém, cujo grau de cognição é equiparado ao de uma criança de 10 anos de idade, pode vir a adotar um adolescente de 16 e lhe propiciar tudo o que a Constituição determina?
Porém, voltemos ao dispositivo legal criado pelo Estatuto do Deficiente e que estabelece que a deficiência mental ou intelectual não impede a pessoa em idade núbil de contrair matrimônio, podendo tal vontade ser expressa pelo próprio sujeito, por meio de responsável ou até de curador (lembrando que o limite de curatela é de relativamente incapaz).
Vamos à situação prática: casal comparece perante Oficial de Registro Civil para habilitar o casamento. O Oficial verifica que se trata de um jovem, de trinta e poucos anos, interditado, acompanhado de seu curador e de uma outra pessoa, no caso, uma jovem com vinte e poucos anos de idade. O Oficial, ao receber os documentos4, verifica que na certidão de nascimento está anotada uma interdição, transcrita no livro E, em que o juiz reconhece a absoluta incapacidade do sujeito (antes do Estatuto entrar em vigor). O Oficial recepciona todos os documentos e antes de lançar no protocolo do Registro Civil, entrevista as partes. Verifica que o pretendente não consegue se manifestar e questiona se realmente quer casar, ocasião em que o curador responde que sim, visto que o jovem não consegue falar.
O Oficial se recorda que o Estatuto do Deficiente possui o artigo 83 o qual determina:
Art.83 "Os serviços notariais e de registro não podem negar ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo reconhecer sua capacidade legal plena, garantida a acessibilidade".
Lembra o Oficial, ainda, que o descumprimento implica em crime discriminação, consoante artigo 88 do Estatuto:
Art. 88. Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
§ 1º Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço) se a vítima encontrar-se sob cuidado e responsabilidade do agente.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput deste artigo é cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 3º Na hipótese do § 2o deste artigo, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:
I - recolhimento ou busca e apreensão dos exemplares do material discriminatório;
II - interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na internet.
§ 4º Na hipótese do § 2o deste artigo, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.
Passa então o Oficial de Registro Civil a esclarecer as partes a respeito dos impedimento e do regime de casamento5. Ao tratar dos regimes, o Oficial verifica que o contraente não tem o menor discernimento do que está sendo dito. Seu curador apresenta um pacto antenupcial lavrado em um Tabelionato de Notas, no qual as partes optaram pelo regime da comunhão universal de bens.
O Oficial de Registro Civil, atônito, prenota, ou seja, lança no seu Livro Protocolo e qualifica positivamente, expede os proclamas e edital6, não enviando o procedimento ao Ministério Público, lembrando dos consectários já mencionados de referido artigo.
O mais aterrorizante ainda virá. Uma vez habilitado o referido casamento, é extraído certificado de habilitação7, obtendo as partes autorização para celebrá-lo na própria serventia em questão.
As partes peticionam ao juiz de casamento, e designa-se data para celebração, observadas as solenidades do artigo 1534 do Código Civil.
Por ocasião do ato, estão presentes os contraentes, as testemunhas e o juiz de paz. Porém, impossível o cumprimento do artigo 1535 do Código Civil8, já que o nubente não pode afirmar a sua livre e espontânea vontade. Entretanto, o curador, valendo-se do disposto no art. 1.550, § 2º, expressa vontade do deficiente mental de casar, dizendo ser livre e espontânea a vontade e obriga o juiz de casamento a proclamar "De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados."
Neste momento, está destruída toda o histórico do casamento, do Concílio Tridentino, passando pelas Ordenações, pelo Código de 1916, até hoje. São mais de 500 anos de história jogados ralo abaixo, inaugurando uma fase em que passa a ser possível casar sem vontade, ou melhor, com a vontade ficta do curador.
Nesse nosso pequeno conto, o Oficial de Registro Civil assenta o casamento no livro B, entrega a certidão ao casal, dá por encerrado o ato e arquiva o procedimento.
Dias após, valendo-se da Emenda Constitucional 66/10, a agora contraente intenta ação de divórcio direto pleiteando 50% dos bens do varão e, por que não florearmos nossa pequena história: conluiada com o curador, a jovem reparte parcela considerável do patrimônio do deficiente alçado a capaz.
Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.
Bruno de Ávila Borgarelli é estudante de Direito da USP e pesquisador jurídico.