Um instituto outrora restrito à administração do patrimônio do ausente e aos efeitos sucessórios, reconhecido pelo código civil de 1916 em seu livro I da parte especial (direito de família), a ausência fora recepcionada e ampliada a partir de 2002, passando a vigorar na parte geral da legislação civilista, que, além de repercussões patrimoniais, percebeu inovações jurídicas, sendo reconhecida, inclusive, uma certa extrapatrimonialidade, que é, no tocante a este texto, o objeto de estudo.
Desta feita, estando bem definido o limite desta pesquisa, embora o instituto da ausência em si não seja o foco, faz-se relevante trazer um pequeno introito sobre o mesmo a luz de representativos doutrinadores civilistas brasileiros, perfazendo bases dogmáticas necessárias para avançar na compreensão dos efeitos ora não patrimoniais.
A AUSÊNCIA
Gagliano e Filho (2010, p.172) bem definiram a ausência como antes de tudo, um estado de fato, em que uma pessoa desaparece de seu domicílio, sem deixar qualquer notícia, prevalecendo desde a legislação de 1916 o interesse em proteger o patrimônio do ausente, através de um curador, visando, inclusive, a possibilidade daquele retornar, estabelecendo meios de evitar a ruína (podendo, por exemplo, a ordem de um juiz hipotecar imóveis, Art. 31 do NCC) e procedimentos certos em caso do efetivo retorno, tal como medidas para a máxima preservação dos bens, seja em qualquer fase até a transmissão definitiva destes.
Visando a não permitir que este patrimônio fique sem titular, o legislador traçou o procedimento de transmissão desses bens (em virtude da ausência) nos artigos 463 a 484 do CC-16 (correspondente aos arts. 22 a 39 do novo CC), previsto ainda pelos arts. 1159 a 1169 do vigente Código de Processo Civil brasileiro (GAGLIANO e FILHO, 2010, p.172).
Destaca-se, portanto, como um instituto jurídico com bases jurídicas e procedimentos bem delineados no tocando ao patrimônio do ausente, porém se esquivou o código anterior em tecer normas externas a esta situação, por serem complexas e múltiplas as consequências jurídicas advindas do desaparecimento de uma pessoa, especialmente para a sociedade à época. Para tanto, a legislação pretérita incorreu em uma atecnia, no entender de Gagliano e Filho (2010, p.172), por considerar o ausente como absolutamente incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil com previsão no código de 1916 em seu artigo 5º, IV, e por ato declaratório de juiz.
Tratava-se, sem sombra de dúvidas, de um terrível equívoco conceitual, pois, na verdade, o que se buscava tutelar era o patrimônio do desaparecido, disciplinando, gradativamente, sua sucessão, sempre com a cautela da possibilidade de retorno. Não havia, portanto, incapacidade por ausência, mas sim uma premência em proteger os interesses do ausente, devido à sua impossibilidade material de cuidar de seus bens e interesses e à incompatibilidade jurídica de conciliar o abandono do domicílio com a conservação de direitos (GAGLIANO e FILHO, 2010, p.172).
Assim, como bem revela Pereira (2009, p.191), a aplicação prática demonstrou que o instituto da Ausência, como consagrado naquele código, revelou-se insuficiente para atender a numerosas ocorrências e equacionar problemas de difícil solução.
DISSOLUÇÃO DO MATRIMÔNIO
Destas situações que a legislação anterior esquivou-se, encontra-se a questão do cônjuge do ausente. Percebeu-se, portanto, que o código de 1916 mantinha o mesmo em uma situação de prisão conjugal de forma a manter os impedimentos legais para contrair novo casamento, visto considerar a ausência como uma incapacidade e não reconhecer o divórcio, ainda não permitindo o status de viuvez, enquanto não fosse aberta a sucessão definitiva e a declaração da morte presumida, cabendo ainda preferencialmente ao supérstite a administração dos bens durante todas as fases da ausência (curadoria dos bens do ausente, sucessão provisória e definitiva). Em outras palavras, o código anterior apenas levava em consideração o patrimônio como tutela exclusiva do procedimento de ausência.
Não obstante, existiram algumas tentativas legislativas para positivar outras situações não patrimoniais antes da atual conjectura. Neste sentido, de acordo com Pereira (2009, p.192) o projeto do Código Civil de 1965 (Comissão revisora composta por Orozimbo Nonato, Orlando Gomes, Caio Mário) levantou o impedimento matrimonial, mas previa a nulidade do segundo matrimônio se reaparecesse o ausente, sendo portanto insuficiente.
Outrossim, com as mudanças sociais e desenvolvimento histórico do Divórcio (iniciado a partir da Lei 6.515 de 1977, absorvendo hoje a recentíssima Emenda Constitucional nº 66 de 2010, Art. 226, § 6º, da Constituição Federal de 1988) e a já prevista dissolução do matrimônio pelo fim real da pessoa natural, não poderia permanecer a legislação indiferente sobre o status indefinido que permanecia o cônjuge de ausente. Observa-se aqui uma situação que fere garantias individuais, a luz da atual Constituição, e a própria segurança jurídica, justamente por não ser salutar qualquer indefinição por tempo indeterminado, salvo se a pessoa abrisse mão de seus direitos sucessórios recorrendo ao divórcio a partir de 1977, caminho este não permitido na vigência do Código de 1916.
Apenas a partir do novo Código Civil passou ser possível a dissolução do matrimônio pela morte presumida.
A simples ausência da pessoa, ainda que prolongada, não tem, por si só, repercussão jurídica. O desaparecimento da pessoa sem notícia, não tendo deixado representante ou procurador, por outro lado, autoriza a declaração judicial de ausência, com nomeação de curador (Art. 22 do atual código). O decurso de tempo de ausência mais ou menos longo induzirá a possibilidade de morte da pessoa. Em matéria de direito patrimonial o simples desaparecimento ou ausência decretada não rompe o vínculo do casamento, o que ocorrerá somente pelo divórcio ou com a certeza ou reconhecimento presumido da morte (VENOSA, 2008, p.154).
Oportuniza-se, então, ao cônjuge sobrevivente o direito de escolha entre divorcia-se, abrindo mão de seus direitos sucessórios para contrair novo casamento sem impedimentos legais, ou esperar a declaração da morte presumida, com decretação de ausência ou não, permanecendo-se sucessora legítima do de cujus, podendo contrair novo matrimônio sem impedimentos legais, atendendo somente certas exigências suspensivas (Art. 1.523, NCC).
... o novo Código Civil altera esta situação, decretando, no artigo 1.571, § 1º, a dissolução do casamento pela ausência do outro cônjuge em decisão judicial transitada em julgado. Pode agora, o cônjuge do ausente, optar entre pedir o divórcio para se casar novamente ou esperar pela presunção de morte, que se dá com a conversão da sucessão provisória em definitiva. O divórcio, embora mais rápido, tem a desvantagem de fazer o cônjuge perder o direito à sucessão. Com efeito, sendo o cônjuge herdeiro ainda que haja descendentes ou ascendentes do de cujus (ou, no caso, do ausente), nos termos do art. 1.829 do novo Código, precisará, não obstante, conservar a posição de cônjuge até a conversão da sucessão provisória em definitiva, quando, só então, haverá realmente a vocação hereditária. Se se divorciar antes, embora tendo a vantagem de poder se casar novamente desde logo, terá a desvantagem de perder a capacidade sucessória do ausente (NETO, 2004, p.1).
Posiciona-se Gagliano e Filho (2010, p.176) : “talvez a principal destas inovações seja a possibilidade de dissolução do matrimônio a partir da declaração do estado de ausência do cônjuge”. Ademais, os mesmos autores destacam:
Esta forma de extinção não existia na codificação anterior, e restou bem observada pelo inteligente professor e amigo CRISTIANO FARIAS: A grande novidade da Codificação quanto à disciplina jurídica do ausente é o reconhecimento de efeitos pessoais decorrentes da ausência, ao lado da tradicional proteção patrimonial... Em nosso sentir, o reconhecimento da dissolução do vínculo por essa forma somente se dará após a abertura da sucessão definitiva do ausente, por força da última parte do supratranscrito § 1º, que faz referência à presunção estabelecida por este Código para o ausente.
Outra inovação inferi-se do fato da codificação atual permitir que a morte presumida seja declarada antes mesmo de aberta a sucessão definitiva do procedimento da ausência em casos especiais, permitindo que certos efeitos entrem em vigor com a certeza ou extrema probabilidade do não retorno do ausente, como bem explica Maria Berenice Dias (2007, p.273):
Não só a morte efetiva, mas também a morte presumida (CC 6º e 7º) e a Declaração de Ausência (CC 22 a 39) dissolvem o casamento. A declaração de morte presumida sem a decretação de ausência pode ocorrer em duas hipóteses: quando for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida ou, no caso do desaparecimento em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Assim, depois de esgotadas buscas e averiguações, é possível a declaração da morte presumida, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento (CC 7º, parágrafo único). Obtida tal manifestação, é permito ao “viúvo presumido” casar.
Para Venosa (2008, p.156), embora aparente estar resolvida a questão da dissolução do matrimônio pela ausência, a legislação brasileira ainda não se preocupou com a hipótese do regresso do morto que encontra seu cônjuge casado com terceiro, destacando que isso deverá ocorrer cedo ou tarde. Ademais, o mesmo autor aponta que no direito argentino já se encontra positivado que o segundo matrimônio, desfeito o primeiro, deve prevalecer, tanto mais quanto é possível que a novo matrimônio haja gerado filhos, que, de plano, ver-se-ão em dolorosa situação de ver destruído seu lar (VENOSA apud GUILLERMO BORDA, 2008, p.155).
Por outro lado, Maria Berenice Dias, aponta a solução “em face do silêncio da lei”, em favor da prevalência do presente matrimônio, embora seja objeto de divergência doutrinária:
Em face do silêncio da lei, tem-se questionada o que ocorrer se o desaparecido aparece. A doutrina diverge mas, afirmando a lei que a morte presumida do ausente dissolve o vínculo matrimonial (CC 1.571, § 1º), não há que falar em bigamia. O novo casamento do cônjuge do ausente não poderá ser tido por inexistente, ou nulo, pois em matéria de casamento, não há nulidade sem previsão legal (DIAS, 2007, p.274).
OUTROS EFEITOS
Dentre outros efeitos não patrimoniais decorrentes da ausência, pode-se citar todos aqueles oriundos da própria morte fática, extinguindo-se a personalidade natural. Assim, quando declarada a morte presumida, seja após aberta a sucessão definitiva ou sem decretação de ausência em casos extremamente prováveis (desaparecimento em campanhas, guerras civis, etc), as diversas consequências jurídicas da vida civil do ausente não poderiam ficar em aberto ad eternum, com fundamento na própria segurança jurídica, resolvendo-se tantos atos jurídicos sejam necessários.
[…] De acordo, ainda, com o Código Civil, entre outros efeitos, extingue-se o poder familiar (art. 1.635, inc. I); cessamos contratos personalíssimos ou intuitu personae, sendo exemplo o de locação de serviços (art. 607), de mandato (art. 682, inc. II), de sociedade em relação a um sócio (art. 1.028), de gestão de negócio (art. 865), de fiança no pertinente à responsabilidade do fiador (art. 836); terminam as obrigações de prestar alimentos uma vez esgotado o patrimônio do alimentante falecido (art. 1.700), de fazer quando exigido o cumprimento pessoal (art.248); não mais prevalece o pacto de preempção (art. 520); extingue-se o direito para propor a ação assegurada ao doador por ingratidão do donatário (art. 560), o usufruto (art. 1.410, inc. I), a doação na modalidade de subvenção periódica (art. 545), o encargo testamentário (art. 1.985), os filhos menores são colocados sob tutela com o falecimento dos pais (art. 1728, inc. I); caduca o fideicomisso se o fideicomissário morrer antes do fiduciário, ou antes de realizar-se a condição resolutória (art. 1.958); morrendo o locador ou o locatário, transfere-se aos seus herdeiros a locação por tempo determinado (art. 577); nos casos de morte, ausência ou interdição do tutor, as contas serão prestadas por seus herdeiros ou representantes ( art. 1.759); cabe a indenização no caso de morte de paciente causada no exercício de atividade profissional, em que se apura a existência de negligência, imprudência ou imperícia (art. 951) (FREITAS PEREIRA apud ARNALDO RIZZARDO, 2007,p.4).
CONCLUSÃO
Não há como negar que a possibilidade de dissolução do matrimônio a partir da declaração de morte presumida, seja com decretação de ausência ou não, compõe-se como uma medida moralizadora e respeitadora das garantias individuais do cônjuge sobrevivente na medida em que protege a liberdade de contrair novo casamento e contextualiza-se com o momento histórico atual da sociedade, que não mais discute motivos para o fim de uma relação conjugal.
O instituto da ausência resolve todas as situações patrimoniais de forma já pacificada e sem mais discussões doutrinárias calorosas, todavia, em virtude da atual contextualização da esfera civil, inclusive dos demais ramos do Direito, com a Constituição, materializando a mesma no topo da pirâmide de Kelsen , todos os atos jurídicos devem convergir em direção ao manto da segurança jurídica. Não mais se aceita indefinições, embora seja um trabalho árduo mapear toda e qualquer situação que venha provocar pequenas rachaduras neste mesmo manto protetor.
Embora destaque-se a dissolução do matrimônio do ausente como uma das relevantes inovações jurídicas do atual código, caminhando em conjunto com as mudanças sociais, dado o dinamismo da vida em sociedade, todos os efeitos não patrimoniais portam-se igualmente importantes, a medida que se resolve a situação do ausente, presumido morto, incluindo data de óbito determinado pelo magistrado, precavendo-se a lei em caso de um possível retorno. Todavia, percebida a volta do ausente cabe ao mesmo reiniciar sua vida civil e responder diretamente todos os ônus e bônus de sua estadia sabe lá onde for.
REFERÊNCIAS
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Teoria do ordenamento jurídico: uma concepção euclidiana. Uma demonstração geométrica da pirâmide de Kelsen. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 403, 14 ago. 2004. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2012.
CARVALHO NETO, Inácio de. A Morte Presumida como Causa de Dissolução do Casamento. 2004. Disponível . Acesso em 01/02/2012.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4 ed. Local: São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
FREITAS PEREIRA, Amanda Cristina. Morte presumida sem decretação de ausência e o retorno do cônjuge: efeitos jurídicos matrimoniais. Revista Jurídica. 2007. Disponível em . Acessado em 02/02/2012.
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, volume I: parte geral. 12 ed. Local: São Paulo: Saraiva, 2010.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Local: Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 8 ed. Local: São Paulo: Atlas, 2008.
Autor: Luiz Gustavo de Oliveira Ramos é servidor do Tribunal de Justiça de Sergipe, pós-graduado em Docência no Ensino Superior.
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