A análise do crescimento populacional no Brasil revela uma disparidade alarmante: enquanto a população em geral cresceu 11% de 2011 a 2021, a população em situação de rua aumentou 211% entre 2012 e 2022, refletindo um agravamento da extrema pobreza.
A urgência deste cenário foi reconhecida recentemente pelo Supremo Tribunal Federal. Sob a coordenação do ministro Alexandre de Moraes, a corte emitiu uma medida cautelar na ADPF 976, destacando a omissão do poder público em relação ao Decreto nº 7.053/2009 e exigindo a elaboração de um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua.
O sistema de justiça deve reconhecer e abordar o problema estrutural do empobrecimento em massa, como resultado de um histórico colonizador e agravado por crises econômicas e sanitárias severas. É essencial que o poder público se organize para oferecer serviços adequados às pessoas que vivem em extrema vulnerabilidade social.
A erradicação da pobreza e da marginalização são metas impostas à República brasileira. O artigo 182 da Constituição de 1988 protege o princípio da função social da cidade e garante a qualidade de vida dos moradores. Portanto, os princípios de desenvolvimento urbano devem assegurar o bem-estar de todos, inclusive da população de rua.
A importância do termo ‘pessoa em situação de rua’
A mudança na denominação de “mendigo” para pessoa em situação de rua – busca um elemento comum para tantos sujeitos diferentes em situação de vulnerabilidade, com vistas à identidade conceitual de uma população que até então não era individualizada. Deve-se atentar que a ausência de elementos em comum constitui obstáculo para a construção de uma categoria que tenha força política para reivindicar um conjunto de direitos específicos.
Conforme Melo (2011):
“Existe uma mesma base, um pano de fundo marcado pela violência que congrega experiências negativas nas ruas de todo país. As formas de se impedir acesso tanto àquilo que é público quanto privado, a violação sistemática de direitos, a perpetração de violências físicas e simbólicas por parte de diversos agentes, por fim, todos problemas da população de rua são de uma só vez, calcificados sobre uma mesma alcunha e responde pelo nome de ‘sociedade’.”
Deste modo, promover a reflexão do uso politicamente correto do termo “pessoa em situação de rua” tem como propósito contribuir para a construção de uma identidade que centralize a figura da pessoa sujeito de direitos. É imperioso ressaltar que a violência social que essa população convive cotidianamente perpassa pelo uso das palavras, portanto, a construção de um termo mais humanizado simboliza o movimento de integração da população em situação de rua no debate.
Deve-se considerar a situação de extrema vulnerabilidade social desse grupo populacional, juridicamente caracterizada – conforme o parágrafo único do artigo 1º do Decreto Federal nº 7.053/2009, que instituiu a Política Nacional para as Pessoas em Situação de Rua:
“…considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.”
Luta por direitos também significa o combate à injustiça social
O conceito de heterogeneidade deve ser visto sob as seguintes perspectivas: objetiva e subjetiva. A heterogeneidade objetiva revela a diversidade de ideias, opiniões e experiências de vida de cada um dos indivíduos que vivem em situação de rua, o que enriquece inclusive os estudos, debates e até mesmo as políticas públicas para esse grupo vulnerável.
Além disso, a heterogeneidade subjetiva expressa a realidade de que, além de a população de rua ser um grupo heterogêneo, cada pessoa em situação de rua tem sua própria história de vida, devendo o Estado tratar cada caso de forma específica, levando em conta as particularidades da pessoa em situação de rua.
No mais, a população em situação de rua, atualmente, sobrevive em condições sub-humanas, a conjuntura de não estar abrigado em um lar como realidade social que também os faz carecer de todo aparato necessário para uma digna.
Contudo, o que essa conjuntura ignora é o reconhecimento positivo que o ordenamento brasileiro confere à população de rua, atribuindo-lhe a condição de sujeito de direito, dentro de uma perspectiva de identidade constitucional.
Não por outro motivo, a Corte IDH no Caso Villagrán Morales e outros vs. Guatemala (Caso dos Meninos de Rua), reconheceu que: “estar em situação de rua é estar vulnerável, indefeso e em uma situação de alto risco, vulnerabilidade, em meio a uma situação humilhante de miséria e em um estado de padecimento equivalente a uma morte espiritual”.
Nesse paradigma, o empoderamento das pessoas em situação de rua como sujeitos de direito deve ter como objetivo proporcionar a conquista da cidadania e a ocupação de um espaço real como membros da sociedade, de modo a construir sua própria autonomia. A luta pelos direitos também significa o combate à injustiça social.
Segundo o autor José Geraldo de Sousa Junior:
“a análise da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, que se exprime no exercício da cidadania ativa, designa uma prática social que autoriza a estabelecer, em perspectiva jurídica, estas novas configurações, tais como a determinação de espaços sociais a partir dos quais se enunciam direitos novos, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos e a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito.” (SOUSA JUNIOR, 1990, p. 314).
Processo estrutural e a protagonização das pessoas em situação de rua
Assim, ao invés de abandonar o Direito, busca-se evitar que se perca o seu potencial emancipador, por uma acepção que possa prestigiar a concretização e ampliação de garantias fundamentais em prol de grupos vulnerabilizados (SOUSA JUNIOR et al., 2019a, p. 13). Portanto, é necessário que o poder público reconheça a pessoa em situação de rua como sujeito protagonista da sua própria existência, de modo que as ações públicas devem considerar o empoderamento de grupos para a conquista da cidadania, compreendendo-os e sendo compreendidos como integrantes da sociedade, construindo, individualmente e coletivamente a sua própria história.
Por isso, a violação sistemática dos direitos das pessoas em situação de rua foi discutida no âmbito do STF, que reconheceu a existência de um possível estado de coisas inconstitucional decorrente da omissão do poder público em relação ao Decreto nº 7.053/2009, e alude a necessidade de efetiva implementação de uma política para o segmento populacional.
Nesse contexto, o processo estrutural, atualmente, é considerado, como um instrumento para a concretização da protagonização das pessoas em situação de rua, diante da gama de legislações pertinentes e problemas estruturais complexos e multidimensionais. Deve-se atentar que a formação e a relevância dos litígios estruturais requerem a implementação de políticas públicas e a participação efetiva dos atores envolvidos na solução mais adequada do conflito.
Segue o entendimento da doutrina:
“O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou reestruturação).” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2020, p. 574).
Assim, deve-se atentar aos instrumentos ideais para que a composição de um litígio estrutural considere a rua como um locus de construção de identidades e servindo como palco de encontros com intuito de fomentar a participação social das pessoas em situação de rua que frequentam determinado território.
Dessa forma, as demandas para a efetivação dos direitos das pessoas em situação de rua são particularmente relevantes, uma vez que as vítimas são pessoas em situação de vulnerabilidade social e, muitas vezes, não têm condições de procurar a tutela jurisdicional estatal, dada a fragilidade institucional dos serviços prestados.
Microssistema de proteção
Contudo, é constatado uma hipertrofia da dimensão política-simbólica dos julgados estruturais e dos textos normativos em detrimento da eficácia das políticas públicas. Sob este ponto de vista, é possível notar a criação de normas-programa com o objetivo de pacificação social em detrimento da efetiva implementação dos direitos sociais em relação às pessoas em situação de rua.
Inclusive, atualmente, há um microssistema de proteção das pessoas em situação de rua no sistema jurídico brasileiro, que é composto pelos Decretos 7.053/2009 e 9.894/2019, pela Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993), pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), pelas Resoluções 40/2020 do CNDH e 425/2021 do CNJ, e, finalmente, pela Lei 14.821/2024.
À título de exemplo, a publicação da Lei nº 14.821 de 17/01/24 que instituiu a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua).
Os recentes dispositivos normativos determinam o acesso imediato à moradia para os beneficiários, através de políticas habitacionais ou de políticas públicas específicas para pessoas em situação de rua, com o objetivo de assegurar a sustentabilidade do acesso ao emprego digno, respeitando as especificidades e a autodeterminação das pessoas em situação de rua.
A Lei nº 14.821/2024 apresenta diversas inovações ao estabelecer mecanismos para assegurar a profissionalização, a formação e o fomento de artistas em situação de rua, de forma a assegurar o acesso à renda através das atividades culturais, além de oferecer meios para preservar a identidade e dar visibilidade ao seu trabalho como forma de saída das ruas.
A implementação da Política Nacional é prevista de forma descentralizada e coordenada entre a União, os estados e os municípios que optarem por aderir. Desta feita, a adesão não é obrigatória, sendo efetivada através de um instrumento específico que estabelecerá as responsabilidades e atribuições que devem ser compartilhadas entre os entes federativos.
Dentre as inovações, a Política Nacional cria as Bolsas de Qualificação para o Trabalho e Ensino da População em Situação de Rua (Bolsas QualisRua) (artigo 12). Associadas às atividades de qualificação, capacitação, formação profissional e de elevação da escolaridade, para garantir a permanência dessa população nos ambientes de aprendizado.
No ponto, ainda é previsto que o recebimento da bolsa de qualificação será cumulativo e não impedirá o recebimento de outros benefícios. Ademais, o texto dispõe acerca da obrigatoriedade do Estado ou Município de criar mecanismos que garantam prioridade de vagas em escolas públicas para crianças e adolescentes filhos de pessoas em situação de rua que estejam buscando qualificação profissional (artigo 18).
Constata-se também que a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua) prevê de forma inovadora o estímulo direto a agentes ambientais (catadores) que há tanto tempo têm agido por um futuro mais sustentável em nosso país.
Com apoio a essas iniciativas, a lei possui potencial de fomentar projetos inovadores, gerar iniciativas socioambientais, capacitar mão de obra e aquecer a economia com a capacitação tecnológica.
Mera disposição normativa não significa progresso
Desta feita, evidencia-se que a legislação tem um grande potencial transformação social, mas o problema surge quando há efeitos hipertroficamente simbólicos, o que prejudica sua eficácia instrumental normativa. Sendo assim, necessária a fiscalização da sociedade civil e dos entes públicos para prevenir a chamada legislação-álibi como solução aos problemas estruturais.
Segundo o autor Marcelo Neves:
“a legislação-álibi se destina a criar a imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam efetivamente normatizadas de maneira consequente conforme os respectivos textos legais. (NEVES, 2007, p. 39).”
Nesse caso, a legislação-álibi se trata de uma solução aparente, que cria a imagem de um estado que responde aos problemas reais da sociedade, podendo, até mesmo, gerar um sentimento de bem-estar nas pessoas, mas, na prática, não necessariamente significa um resultado positivo naquilo que se propõe.
Assim, a mera disposição normativa não significa progresso em termos de políticas públicas, tendo em vista que o compromisso com a dignidade humana e a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos é, de fato, decorrente de uma postura governamental e social.
De acordo com o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, do ano de 2011 até o ano de 2021, o crescimento da população brasileira foi de 11%, enquanto o grupo da população em situação de rua, nos anos de 2012 até 2022, teve um aumento de 211%, ou seja, um aumento da extrema pobreza. Assim, a demanda por direitos fundamentais, seja preventiva ou reparatório, deve ser implementada através de programas estruturantes com ações adequadas e constantemente revisadas, tendo em vista o espaço e os atores diretamente envolvidos.
De fato, a publicação da Lei 14.821 de 16 de janeiro de 2024 apresenta um potencial avanço nas políticas de proteção social para a pessoa em situação de rua, tendo em vista previsão de ações voltadas para o protagonismo e emancipação da população em situação de rua.
Se efetivamente implementada, a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua) pode viabilizar participação social e o direito “de espaço de voz” das pessoas em situação de rua como fenômeno social transformador, diante da atual da violação massiva de direitos, tendo em vista que o desenvolvimento do sentimento de pertencimento social é um fator que impulsiona a inserção nas estruturas sociais.
Assim, como exposto, a PNTC PopRua e os recentes julgados estruturantes podem contribuir para o empoderamento da população que ocupa os espaços públicos, mas é preciso que a lei em questão ultrapasse o efeito meramente simbólico, promovendo a eficácia na implementação da política pública e incentivando a abertura dos espaços de decisão com o objetivo de incentivar a participação da população que usa as ruas como local de moradia temporária ou permanente.
Fonte: Conjur