Os registros públicos visam dar autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos conforme preceitua o art. 1º da lei de registros públicos (lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973). Esta lei rege os cartórios de registro civil de pessoas naturais, registro civil de pessoas jurídicas, registro de títulos e documentos e o registro de imóveis (art. 2º).
Os fatos ocorridos na vida do indivíduo, portanto, ao serem inscritos nos livros de registros ganham segurança e autenticidade, vez que foram submetidos ao crivo do registrador ou de seu preposto, em ato chamado de qualificação registral, para só então adentrar ao sistema de registros públicos; consequentemente, geram a chamada eficácia por meio da publicidade declarativa e a possibilidade de, ao serem conhecidos por terceiros, serem também oponíveis erga omnes, vindo a garantir prova de direitos.1
No entanto, destaca-se a atuação dos registros civis das pessoas naturais, que se demonstra fundamental para o exercício da cidadania e do livre desenvolvimento da pessoa humana. Assim, estes cartórios têm contato com a pessoa desde o seu nascimento e participam de atos importantes da vida cotidiana de todo cidadão. O que impõe uma ponderação preliminar se a mesma publicidade inerente à segurança jurídica dos direitos reais desempenhada pelo registro de imóveis, deve ser a que norteia a atuação dos registros civis das pessoas naturais.
Parece-nos que o CNJ2 ao incorporar as regras relacionadas à proteção de dados no código nacional de normas (provimento 149, de 30 de agosto de 2023), em especial o capítulo II da parte geral, no Título VI, está atento a tais diferenças estabelecendo regras distintas sobre proteção de dados pessoais levando em consideração cada uma das serventias extrajudiciais (arts. 79 a 135).
Algumas regras merecem uma reflexão, sobre as quais se dedica este texto da coluna Migalhas de IA e Proteção de Dados, em especial, o § 2º do art. 114 (sobre a emissão de certidão com dado sensível de pessoa falecida), art. 118 (dispensa requerimento, inclusive de terceiros para emissão de certidão), art. 119 (não se aplicam as restrições dos dados sensíveis e emissão de certidões às pessoas falecidas) e parágrafo único do art. 120 (possibilita a emissão de certidão a qualquer pessoa que apresentar a certidão de óbito).
Certidão de registro civil de inteiro teor com dados sensíveis antes e depois da morte
Pelo código nacional de normas, apenas o próprio registrado pode solicitar sua expedição, independentemente de autorização do juiz corregedor permanente; todavia em sendo solicitada por terceiros, e havendo dados pessoais sensíveis3, a certidão somente pode ser emitida mediante autorização do juízo competente (§ 1º do art. 114 do CNN/CNJ).
Todavia, após o falecimento do titular do dado sensível, as certidões de inteiro teor podem ser fornecidas aos parentes em linha reta independentemente de autorização judicial (§ 2º do art. 114 do CNN/CNJ).
Ora, qual seria a razão deste tratamento díspar aos dados pessoais sensíveis de pessoas vivas e pessoas falecidas. Por exemplo, uma pessoa que tenha feito retificação do assento para alterar gênero e prenome - tal informação é um dado sensível, pois se relaciona à vida sexual, cuja publicização não é permitida a fim de assegurar o direito à intimidade destas pessoas.
Entretanto, após a morte da pessoa, esta informação passaria a poder ser publicizada pelo parente em linha reta, ao obter a certidão em inteiro teor, independentemente de qualquer motivação a ser analisada?
Parece-nos que esta regra revela a confusão que ocorre entre proteção de dados e sigilo, tendo em vista que a LGPD não visa a resguardar segredo das pessoas, a única menção sobre sigilo na LGPD está no capítulo VII (sobre segurança e boas práticas em matéria de proteção de dados).
Em outras palavras, o sigilo aqui estabelecido resguarda o acesso indevido às informações que devem ser mantidas em segurança pelos agentes de tratamento de dados. Até porque no art. 18 da LGPD, que traz os direitos assegurados aos titulares de dados, não há menção ao direito ao sigilo.
Certidão de óbito pode ser emitida para qualquer pessoa
O art. 118 do CNN/CNJ traz uma regra que amplia a publicidade da certidão de óbito, permitindo que seja emitida independentemente de requerimento ou autorização judicial, retirando do registrador civil ou do Poder Judiciário, qualquer análise a respeito do ato, quando eventualmente necessário.
Assim, por meio de uma certidão de óbito em breve relato, atualmente passível de emissão a qualquer pessoa que o solicite, é possível que se venha a saber: O nome completo do falecido; seu número de inscrição cadastral junto ao Ministério da Fazenda (CPF); o sexo; a cor; o estado civil e a idade; a naturalidade; o número de seu documento de identificação; se era ou não eleitor; a filiação e residência; a data e a hora do falecimento; o local do falecimento; a causa da morte; o município e o cemitério onde foi sepultado, ou o local onde foi cremado (se conhecido); o nome completo do declarante; eventuais declarações a respeito do falecido, normalmente as que se referem o art. 80, itens 6º, 7º, 10º e 12º da lei de registros públicos (se deixou bens, testamento, filhos etc.).
A LGPD restringe a divulgação destas informações? Parece-nos que não, na medida em que a publicidade registral tem por base a lei seja para dados pessoais genericamente considerados (inc. II do art. 7º), seja para dados pessoais sensíveis (alínea "a" do inc. II do art. 11).
Portanto, se houver necessidade de restringir algumas destas informações será em virtude da proteção à intimidade ou à privacidade e não, necessariamente à proteção de dados.
As restrições relativas aos dados sensíveis devem ou não se aplicar às pessoas falecidas?
No art. 119 do CNN/CNJ traz outra regra preocupante quanto à distinção do tratamento de dados às pessoas falecidas, pois as restrições relacionadas aos dados pessoais sensíveis não se aplicam às pessoas falecidas.
Na coluna Migalhas de IA e de Proteção de Dados da semana passada, enfrentou o tema relacionado à proteção post mortem dos dados pessoais.5 Nesta oportunidade, constatou que a ANPD ignorou a necessária interpretação da LGPD conforme a CF/88 e o CC/02:
"Os dados pessoais, sensíveis ou não, como mencionado anteriormente, previstos na LGPD, são uma espécie do gênero direitos da personalidade. Esses dados estão intrinsecamente ligados à dignidade humana e à proteção da identidade e privacidade de cada indivíduo, conectando-os diretamente aos direitos fundamentais de personalidade assegurados pela CF/88 e pelo CC. Assim como o nome, a imagem e a honra, os dados pessoais integram esse conjunto de direitos inalienáveis, cuja função é garantir o livre desenvolvimento da pessoa, tanto no ambiente físico quanto no digital. Nesse sentido, o que a ANPD realizou foi deslocar o conceito jurídico de tutela post mortem de seu contexto macrossocial para um contexto isolado, o que se mostra equivocado."
Esta restrição parece-nos fruto de uma influência equivocada do direito europeu sobre proteção de dados pessoais, pois não foi refletida com base na doutrina civil e constitucional já consolidada no país sobre os direitos de personalidade post mortem.
O tema foi enfrentado pelo WP29, no parecer 4/07, sobre o conceito de dado pessoal, no qual foram estabelecidos quatro requisitos que devem ser preenchidos para que seja considerado um dado pessoal, quais sejam: 1º) "qualquer informação"; 2º) "relacionada a"; 3º) "pessoa natural"; e 4°) "identificada ou identificável".
Certidão sobre procedimentos preparatórios ou de documentos para a realização de atos no registro civil das pessoas naturais
O caput do art. 120 do CNN/CNJ estabelece que a emissão e o fornecimento de certidão sobre procedimentos preparatórios ou documentos apresentados para a realização de atos no Registro Civil das Pessoas Naturais, somente podem ser realizados quando requeridos pelo próprio titular de dados constante dos documentos, que podem ser representados por mandatários com poderes especiais ou representantes legais. Tal restrição não se aplica se o requerente da certidão obtiver uma autorização judicial ou quando o documento for público com publicidade geral e irrestrita.
Aqui há um equívoco muito comum: confunde-se a proteção de dados quanto à esfera pública e quanto à esfera privada, uma vez que a própria LGPD se aplica tanto a dados públicos quanto a dados privados, justamente porque o que ela resguarda não é sigilo imposto por lei especial, como sigilo fiscal, bancário, adoção, pessoas transgênero, mas sim, o controle do fluxo de suas informações pelos titulares de dados.
Entretanto, o parágrafo único do art. 120 do CNN/CNJ permite que tal certidão seja fornecida para qualquer pessoa que apresentar a certidão de óbito, independentemente de qualquer justificação razoável. Em mais esta ocasião há um tratamento distinto entre a proteção da pessoa viva e da pessoa falecida, que não nos parece ter respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.
Conclusão
A tutela post mortem dos direitos de personalidade tem desafiado o Judiciário, pois a linha divisória entre os direitos de personalidade da pessoa falecida e dos seus sucessores elencados no parágrafo único do art. 12 do CC/02 é muito tênue. No entanto, deve-se agir levando em consideração o que normalmente se esperaria conforme os interesses legítimos da pessoa falecida.
Neste sentido, Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior afirmam os direitos de personalidade da pessoa falecida como "projeção da existência anterior", em especial quanto a direitos e deveres que se projetam para seus sucessores, como é o caso da proteção do nome, da boa fama, da memória e dos frutos da potência intelectiva e criativa de seu antigo titular. O problema é que esta não está viva para poder dizer o que e como quer que seus direitos de personalidade sejam administrados, portanto, algumas ferramentas de tutela de assets digitais (herança digital) podem resolver estes problemas.
Em suma, grande parte dos questionamentos aqui suscitados relaciona-se à confusão entre privacidade e proteção de dados. Stefano Rodotà9 destaca uma diferença importante: O direito da privacidade possui tutela estática e negativa, enquanto a tutela dos dados pessoais, estruturada a partir de regras sobre o tratamento de dados, poderes de intervenção, dentre outras, possui uma tutela dinâmica, ou seja, surge com a coleta dos dados e permanece com eles durante a circulação e armazenamento.
Neste sentido, parece-nos que como a emissão de certidão é uma atividade típica do oficial registrador civil das pessoas naturais, regulada pela lei de registros públicos, bem como por normas de serviços das corregedorias gerais de justiça dos Tribunais de Justiça estaduais e os provimentos do CNJ, sendo este o fundamento da base para o tratamento de dados por parte dos cartórios, e como já evidenciado nesta coluna Migalhas de IA e Proteção de Dados, a emissão de certidão sendo atividade típica dos oficiais registradores não deve ser considerada um compartilhamento de dados.10
Portanto, qualquer restrição deve ter embasamento em lei ou em direitos de personalidade como ocorre na tutela da privacidade e intimidade que se estendem às pessoas falecidas igualmente às pessoas vivas nos termos do parágrafo único do art. 12 do CC. De maneira que não nos parece razoável tratar distintamente sobre emissão de certidões de pessoas vivas e falecidas, seja porque algumas restrições são impostas por leis específicas independentemente da LGPD; seja porque a restrição da proteção de dados às pessoas vivas é de constitucionalidade questionável em virtude da necessária interpretação conforme à Constituição Federal e o diálogo necessário entre LGPD e o CC.
Fonte: Migalhas