Os tribunais de Justiça de Pernambuco e do Maranhão publicaram nos diários oficiais dos respectivos estados provimentos de suas Corregedorias de Justiça regulamentando o chamado “divórcio impositivo”, a fim de permitir a averbação do divórcio a pedido unilateral de qualquer dos cônjuges perante o cartório de registro civil[1]. Tais medidas parecem tender a reduzir a sobrecarga do Poder Judiciário. A consolidação do Estado moderno foi acompanhada por uma dupla sobrecarga, quais sejam, a do Direito e, consequentemente, a do Estado. A primeira sobrecarga diz respeito ao excesso de fragmentação das ordens normativas, que redundam na caracterização do “Direito como único meio de tratamento de conflitos realmente significativo na sociedade complexa”[2]. Tal sobrecarga do Direito resulta em uma sobrecarga do Estado, porquanto a pretensão moderna de monopólio estatal da jurisdição faça com que o Estado e o Direito sejam dotados de funções muito próximas, ou quase idênticas. É por isso que, no âmbito da chamada “divisão” de poderes estatais, verifica-se “uma sobrecarga dos órgãos encarregados das decisões concretas, mormente o poder judiciário e os diversos conselhos e comissões do executivo”[3]. Uma das respostas a essa sobrecarga do Judiciário seria a tendência à “desoneração do Judiciário”, pela desjudicialização e pela autocomposição. A desjudicialização ou extrajudicialização dos conflitos é marcada pela transferência de competências do Judiciário para órgãos extrajudiciais, especialmente para serventias notariais e registrais[4]. O fenômeno da desjudicialização guarda relação com a exigência de efetividade do Direito. A efetividade aqui deve ser compreendida como uma adequada tutela jurídica, e não como uma mera exigência de celeridade na resolução dos conflitos[5]. A tendência à desjudicialização é evidenciada na atribuição de poderes para que certos órgãos extrajudiciais possam solucionar questões nas quais se verifica o consenso e a disponibilidade dos direitos das partes, no sentido de contribuir para a efetividade do direito. São exemplos dessa tendência institutos como: a retificação extrajudicial de registro imobiliário (Lei 10.931/2004), o divórcio e o inventário extrajudiciais (Lei 11.441/07), a consignação em adimplemento extrajudicial (artigo 890 do CPC, com redação da Lei 8.951/94) etc.[6] Nesta seara, destacam-se as figuras do notário e do oficial de registros públicos, que “são profissionais do direito, admitidos mediante concurso público, para exercer atividade notarial e registral mediante delegação do Poder Público, em caráter privado. Dotados de fé pública, exercem serviços voltados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia de atos jurídicos (CF, art. 236; Lei 8.935, arts. 1º a 3º)”[7]. Contudo, não se pode olvidar do outro componente da “desoneração do Judiciário”: a autocomposição. Registre-se, nesse sentido, regra contida no artigo 161 da Constituição de 1824: “Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum”.Atualmente, entende-se que em tal forma de solucionar conflitos: “resistindo à clássica hetero-composição (representada basicamente pela presença de um ‘estranho’, o Judiciário), a consciência jurídica do cidadão é convocada a atuar civicamente, desestimulando-se que o Judiciário sirva como depositário primeiro e imediato do mero inconformismo entre interessados. A prática de descarregar demandas no Judiciário para que este encontre, isoladamente, as melhores e mais sábias soluções, não atende à melhor proposta de acesso à Justiça. Evidentemente que o Judiciário deve estar disponível, sempre que necessário for, para todas situações que não possam encontrar uma auto-composição ou um auto-controle dos interessados”[8]. Destarte, o divórcio e a separação extrajudiciais devem atender aos dois aspectos da “desoneração do Judiciário”, a desjudicialização e a autocomposição. Na seara dos conflitos familiares, haverá uma preocupação central com a continuidade das relações após a intervenção profissional. Pois nestes conflitos as pessoas devem formular soluções e gerenciar os conflitos de modo a permitir que continuem a se relacionar entre si mesmas após a resolução do litígio. Até mesmo porque a solução do litígio não implicará necessariamente a dissolução dos vínculos familiares. Ainda que o casal não tenha filhos menores ou incapazes, não se pode olvidar do interesse preservação de uma convivência salutar com filhos (maiores e capazes), enteados, parentes etc. O ideal, portanto, é que as partes possam equacionar o conflito com uma relativa rapidez, com transparência e visando a preservação de uma boa convivência entre os membros da família[9]. Em razão disso é que o Código de Processo Civil, nos termos dos artigos 694 e 695, indicou a preferência pela solução consensual do conflito e impôs a designação de audiência de mediação e conciliação nesse caso. O recurso a tais expedientes na resolução de conflitos não visa somente eliminar o conflito aparente, mas busca trabalhar a partir do conflito real, desconstruindo-o de modo a proporcionar uma efetiva solução para o problema, fazendo com que as partes encontram as reais motivações de suas disputas e as solucionem. Além disso, busca-se a valorização do ser humano e a igualdade entre as partes. Portanto, nos conflitos familiares, que muitas vezes são marcadas pela desigualdade entre homens e mulheres, a conciliação e a mediação promovem o equilíbrio entre os gêneros, na medida em que ambos possuem as mesmas oportunidades dentro do procedimento[10]. Não é desnecessário recordar que, para além dos requisitos de consenso e autocomposição, o legislador federal ainda estabeleceu o destinatário da competência de fazer separação e divórcio extrajudicial, bem como o procedimento por meio do qual deverá ser efetuado, a saber, o tabelião de notas e a escritura pública. Não cabe ao ato administrativo criar a nova atribuição ao registrador civil de pessoas naturais e o inovador procedimento extrajudicial a seu cargo, direito novo que só poderia ser inserido no ordenamento jurídico por meio de lei ordinária federal. Tem-se, portanto, flagrante inconstitucionalidade. É nesse sentido o posicionamento de Rodrigo Toscano de Brito, referência obrigatória para aqueles que se dedicam ao Direito Civil e ao Direito Notarial e Registral[11]. Ademais, corretamente, Vítor Frederico Kümpel anota que os referidos provimentos não preveem o recolhimento de emolumentos para a realização da averbação, além de suprimir a escritura do tabelião de notas, o que induz a conclusão pela gratuidade ou pelo pagamento de emolumentos apenas pelo ato de averbação do divórcio[12]. Por outro lado, o divórcio impositivo suprime o equilíbrio entre os cônjuges almejado pelo uso das técnicas de autocomposição, na medida em que ignora uma série de pretensões do cônjuge que será meramente notificado. Veja-se, por exemplo, que o outro consorte poderá ter interesse na realização da partilha imediata dos bens, por exemplo. Nos termos do artigo 733 do Código de Processo Civil de 2015, a escritura de divórcio extrajudicial deve observar as balizas estabelecidas pelo artigo 731 do Código de Processo Civil. Assim, nos termos do parágrafo único do artigo 731 do Código de Processo Civil, só poderá ser dispensada a partilha de bens no divórcio extrajudicial se os cônjuges manifestarem que não desejam resolver esta questão por ocasião do divórcio: “Se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o divórcio, na forma estabelecida nos arts. 647 a 658”. O divórcio impositivo, nos moldes propostos pelo provimento em questão, viola a regra contida no artigo 733 c/c artigo 731, parágrafo único do Código de Processo Civil, porquanto permita que um dos cônjuges disponha unilateralmente no sentido de postergar a partilha dos bens no âmbito do divórcio extrajudicial. A divergência apenas quanto à partilha de bens não inviabiliza a celebração de escritura de divórcio ou separação, desde que os interessados concordem em relação ao divórcio propriamente dito, ou à separação. Entretanto, a fim de resguardar os direitos dos interessados, deve constar da escritura uma cláusula dispondo que os celebrantes acordaram no sentido de realizar a partilha a posteriori, bem como descrevendo os bens comuns e os bens particulares[13]. O divórcio impositivo, portanto, viola diretamente o regramento previsto no Código de Processo Civil, ao permitir que o cônjuge requerente postergue unilateralmente a partilha de bens para momento posterior ao divórcio extrajudicial. Mais grave é a possibilidade de postergar a definição da pensão alimentícia devida ao outro cônjuge, que não encontra previsão no âmbito do divórcio extrajudicial. Observe-se, pois, que o artigo 731 do Código de Processo obriga a celebração de cláusula da qual constarão: “II - as disposições relativas à pensão alimentícia entre os cônjuges”. Veja-se que mesmo no âmbito das relações privadas de caráter patrimonial não se admite que a autonomia privada faça prevalecer disposições unilaterais de vontade “que afastem deveres decorrentes da boa-fé e da função social, especialmente diante de um texto constitucional com perfil nitidamente intervencionista como o de 1988”[14]. É preciso observar, ainda, que o divórcio unilateral desjudicializado, por ser exercido sem a presença do outro cônjuge interessado, impossibilita que este venha a formular pretensões que têm de ser conhecidas anteriormente à decisão desconstitutiva do casamento, por serem a ela prejudiciais. Permita-nos enunciar duas. A primeira diz respeito às discussões acerca da validade do negócio jurídico matrimonial. Ora, pode o outro cônjuge alegar que o casamento é nulo, ou anulável, com todas as consequências que disso derivam; o divórcio impositivo se anteciparia ao direito de invocar a invalidade e se tornaria elemento de sua obstaculização. A segunda pertine à possível incapacidade do cônjuge sujeito à imposição do divórcio. No procedimento consensual articulado por meio do um instrumento, ambos os cônjuges devem estar presentes e cabe ao notário dar fé da capacidade de ambos para a prática do ato. Consumado o divórcio unilateralmente perante o registrador civil, corre-se risco sensível de que a condição de vulnerabilidade do cônjuge incapaz seja omitida. É também nesse sentido o posicionamento da culta professora Andréia Cristianni F. de Andrade da Nóbrega: “O outro reflexo diz respeito ao plano de saúde familiar. Por vezes, um cônjuge é dependente do outro no plano de saúde. Ora, com fundamento no divórcio, os planos de saúde excluem o ex-cônjuge dependente automaticamente, por não ter mais vínculo familiar com o titular do plano. Este contexto, em ação de divórcio permite pedido reconvencional a fim de obter ordem judicial que obrigue o plano a manter o dependente mesmo dissolvido o casamento”[15]. Os exemplos são bastantes para demonstrar que o divórcio dito impositivo pode se tornar um instrumento de desrespeito ao devido processo legal, mascarando litígios sob a estrutura de um procedimento extrajudicial e tolhendo indevidamente pretensões legítimas do outro cônjuge. As relações de família podem ser profundamente marcadas pela desigualdade, especialmente a desigualdade socioeconômica e a desigualdade de gênero. Emprestar tamanho alcance à autonomia privada no sentido de permitir o divórcio impositivo termina por aprofundar tal desigualdade, porquanto retire do outro cônjuge a possibilidade de dispor sobre questões relevantes, tais como os alimentos e a partilha dos bens em escritura pública que, em razão da consensualidade exigida para o divórcio extrajudicial, confere igual valor a sua manifestação de vontade. A atividade de reforma legislativa pressupõe, ademais do respeito à competência e aos requisitos formais devidos, a ponderação detida acerca da conveniência e necessidade da mudança proposta. Os discursos favoráveis ao divórcio impositivo têm salientado o caráter favorável da adoção de um procedimento unilateral como o atendimento a uma demanda pela simplificação e promoção do acesso ao divórcio. Desde a Lei 11.441 e seu divórcio extrajudicial pela via notarial, e mais ainda após a Emenda 66 de 2010, não há justificativa para se afirmar que o divórcio encontre, no Brasil atual, qualquer entrave ou dificuldade. Os riscos inerentes ao modelo proposto, com a supressão da presença do cônjuge interessado, são muito superiores a qualquer benefício que da medida possa derivar, desaconselhando a sua adoção, mesmo que viesse a ser veiculada pela via legítima da lei federal ordinária.
[2] ADEODATO, João Maurício. Função retórica do direito na construção das fronteiras da tolerância. RIPE – Revista do Instituto de Pesquisa e Estudos: Divisão Jurídica, v. 42, n. 49 (jan./jul. 2008). Bauru: Instituição Toledo de Ensino, p. 102-103.
[3] ADEODATO, João Maurício. Função retórica do direito na construção das fronteiras da tolerância. RIPE – Revista do Instituto de Pesquisa e Estudos: Divisão Jurídica, v. 42, n. 49 (jan./jul. 2008). Bauru: Instituição Toledo de Ensino, p. 103.
[4] ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. Usucapião extrajudicial e revogações. In: WANBIER, Tereza Arruda Alvim; DIDIER JUNIOR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coords.). Breves comentários ao código de processo civil. São Paulo: RT, 2015, passim.
[5] TAVARES, André Ramos. Desjudicialização. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/desjudicializacao/10165. Acesso: 10 de abril de 2015.
[6] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Divórcio extrajudicial e separação extrajudicial no Código de Processo Civil de 2015. In: ALBUQUERQUE JR, Roberto Paulino (coord.). Coleção repercussões do novo cpc, v. 11: direito notarial e registral. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 170.
[7] ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. Usucapião extrajudicial e revogações. In: WANBIER, Tereza Arruda Alvim; DIDIER JUNIOR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coords.). Breves comentários ao código de processo civil. São Paulo: RT, 2015, passim.
[8] TAVARES, André Ramos. Desjudicialização. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/desjudicializacao/10165. Acesso: 10 de abril de 2015.
[9] ROSA, Conrado Paulino da. Mediação: uma nova alternativa no tratamento dos conflitos familiares. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6116. Acesso em: 20 de agosto de 2013.
[10] ROSA, Conrado Paulino da. Mediação: uma nova alternativa no tratamento dos conflitos familiares. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6116. Acesso em: 20 de agosto de 2013.
[11] Cf.: http://www.ibdfam.org.br/noticias/6950/Div%C3%B3rcio+impositivo. Acesso em: 28 de maio de 2019.
[12] Cf.: https://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI302762,41046-Divorcio+impositivo. Acesso em: 28 de maio de 2019.
[13] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Divórcio extrajudicial e separação extrajudicial no Código de Processo Civil de 2015. In: ALBUQUERQUE JR, Roberto Paulino (coord.). Coleção repercussões do novo cpc, v. 11: direito notarial e registral. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 175.
[14] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Notas sobre certos aspectos da MP da “liberdade econômica”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-15/direito-comparado-notas-certos-aspectos-mp-liberdade-economica.Acesso em: 18 de maio de 2019.
[15] Cf.: http://www.justificando.com/2019/05/28/divorcio-impositivo-sem-a-presenca-ou-a-revelia-do-outro-conjuge. Acesso em: 28 de maio de 2019.