Quando tratamos da relação entre Direito e Moral, muitas vezes utilizamos o recurso didático de representá-los como círculos a coincidir ou não. Uma das teorias é a dos círculos que se interceptam, formulada por Claude Du Pasquier, em que, embora centrados em pontos diferentes, há um campo de interseção entre o Direito e a Moral, onde está o Direito de Família. A outra teoria, dos círculos concêntricos de Jeremy Bentham também se aplica ao Direito de Família. Os dois círculos, da Moral e do Direito de Família, são concêntricos, com o mesmo centro, embora o maior círculo seja o da Moral. Por isto, a Moral serve de base ao Direito de Família. Trago à tona essas simbolizações gráficas para demostrar que no Direito de Família as suas normas estão definitivamente repletas de moralidade. É exatamente nesse espaço comum que se situa o Direito de Família e todos os outros ramos do Direito nas suas normas que se inspiram nos conceitos familiares. Por isso, a moralidade das relações familiares está presente na Lei e na Jurisprudência, como tenho escrito em vários artigos e será demonstrado mediante a análise de mais um relevante acórdão, deste ano, do Superior Tribunal de Justiça. Sabe-se que os conceitos morais sofreram desprestígio nos últimos tempos por corrente de pensamento que propala, aos brados, a desmoralização nos costumes brasileiros, dando a falsa impressão de verdade absoluta. Afinal uma mentira contada várias vezes, imaginem bradada várias vezes, leva a uma percepção errônea da realidade. Assim, muitas vezes e aos gritos, segundo aquela corrente de pensamento, teria deixado de vigorar a identificação do Direito com os Princípios Morais, daí, em um “tudo pode” sem limites, poder-se-ia pensar em atribuição de direitos familiares, sucessórios e até mesmo previdenciários para amantes (artigo, artigo); ao mesmo tempo, o descumprimento dos deveres do casamento, como a fidelidade, não geraria qualquer consequência para o infrator (artigo, artigo). É de evidência solar que a sociedade brasileira prestigia a força dos deveres conjugais e não admite que a relação de mancebia, diga-se em termos comuns a relação de amante de alguém que é casado ou vive em união estável, gere efeitos familiares e outros direitos que utilizam conceitos do Direito de Família. Pergunte-se a qualquer pessoa, de qualquer condição social, da menos à mais culta, o que pensa de um amante recebendo herança, ou pensão alimentícia, ou pensão previdenciária. A reação primeiramente será de incompreensão da pergunta, por ter uma única resposta: amante não é pessoa da família, por isto não pode ter aqueles direitos. As Cortes Superiores têm o entendimento uniforme no sentido de não atribuir direitos à mancebia, à relação paralela a um casamento ou a uma união estável. Mais uma decisão recente da 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, que julgou matéria sucessória, excluiu da herança a amante que manteve relacionamento com o falecido, inobstante esse concubinato tenha tido a longa duração de 17 anos (notícia). Naquela decisão foi observado que não pode ser crível que após tantos anos de relacionamento extraconjugal a amante não soubesse que o concubino, falecido, fosse casado e convivesse com sua esposa. Essa observação é muito interessante e está perfeitamente de acordo com a lógica, porque não há como acreditar que se esconda por tantos anos um casamento com comunhão de vidas. E a observação é também importante porque não cabe o reconhecimento de uma união paralela a um casamento com comunhão de vidas. Ressalva-se a atribuição de efeitos jurídicos às relações de pessoas com estado civil de casadas na hipótese dessa pessoa estar separada de fato, ou seja, sem comunhão de vidas, desde que preenchidos todos os demais requisitos estabelecidos no Código Civil, devendo o relacionamento ser público, contínuo e duradouro e em constituição de família (art. 1.723, caput e § 1.º). O mesmo raciocínio deve ser aplicado a quem vive em união estável, em razão dos efeitos assemelhados entre essa entidade familiar e aquela constituída pelo casamento civil, em termos de efeitos, de modo que, se há uma união estável preexistente, a outra relação de um de seus partícipes não pode produzir efeitos familiares. Note-se que na união estável a separação de fato por si só extingue a relação, enquanto no casamento a separação de fato não tem a força de extinguir o casamento, motivo pelo qual foi feita essa ressalva somente quanto ao matrimônio no § 1.º do art. 1.723 do Código Civil. A outra hipótese legal à atribuição de efeitos ao casamento de quem conserva o estado civil de casado está prevista no art. 1.561 do Código Civil. Trata-se do chamado casamento putativo, que, embora concorra com outro casamento, produz efeitos em relação ao cônjuge que está de boa-fé, ou seja, àquele que se casa desconhecendo o estado civil de casado de seu cônjuge. Da mesma forma que são ressalvados os efeitos civis do casamento nulo ao cônjuge que estiver de boa-fé, devem também ser assegurados efeitos a uma segunda união estável putativa, quando um dos companheiros desconhece o fato de o outro companheiro ter uma união estável simultânea. No entanto, a longevidade do concubinato desleal ou adulterino, como observado no acórdão em tela, leva à convicção de que a relação não foi constituída de boa-fé, não sendo, portanto, putativa. E, nos dias atuais, a putatividade ou boa-fé deve ser aplicada efetivamente com o máximo rigor, já que, com as amplas possibilidades de deslocamento real e virtual, com o avanço da internet e o surgimento das redes sociais, ocorre a aproximação real e virtual das pessoas, de modo que as informações estão muito acessíveis, tornando-se excepcionalíssima a ignorância de um fato como a existência de um casamento, em que marido e mulher convivam, ou de uma união estável pré-constituída. Assim, é concubinato, sem efeitos de Direito de Família, de Direito das Sucessões e de Direito Previdenciário, a relação que se constitui entre pessoas que são impedidas para o casamento ou que vivem em união estável preexistente, excetuada a hipótese de separação de fato no casamento ou a excepcional ocorrência de putatividade ou boa-fé. Intérpretes do direito deveriam ter sempre presentes as consequências do que defendem. Quando o Código Civil, a Legislação Previdenciária e a Jurisprudência das Cortes Superiores não conferem a proteção estatal para certos tipos de conjecturas que não são familiares, como mancebia, ou poligamia, ou incesto, não o fazem arbitrariamente, mas em atenção à moralidade e aos costumes sociais brasileiros. Moral e Família jamais serão excêntricos! *Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada