O gênero constitui expressão de difícil definição, sendo tratado, na literatura especializada, como uma construção social, erguida a partir da diferença biológica dos sexos (masculino e feminino). Identidade de gênero, por sua vez, refere-se ao sentimento interior de uma pessoa quanto ao gênero que lhe foi conferido no registro. Se existe consonância desse sentimento com as características do gênero socialmente atribuído, o indivíduo é dito cisgênero. Quando existe contraste entre a identidade interior e a registral, encontrando-se a pessoa em desacordo com a conduta psicossocial que a sociedade espera de pessoas do seu sexo biológico, o indivíduo é chamado de transgênero ou pessoa “trans”. No julgamento da ADI 4.275/DF, o STF decidiu dar interpretação conforme ao artigo 58 da Lei 6.015/73, de modo a permitir a alteração, no registro civil, do gênero da pessoa “trans”, independentemente de cirurgia de transgenitalização ou de qualquer outro procedimento médico. Posteriormente, o Provimento 73 do CNJ regulamentou a mudança de gênero no âmbito do Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN), estabelecendo que toda pessoa maior de 18 anos completos, habilitada à prática de todos os atos da vida civil, poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida (artigo 2º). O provimento deixa claro que a alteração do prenome e do gênero será realizada com base na autonomia da pessoa, que bastará declarar, perante o registrador do RCPN, a vontade de proceder à adequação da sua identidade (artigo 4º)1. Entretanto, diversos documentos são exigidos, como certidão de nascimento ou casamento, RG, CPF, título de eleitor, além das certidões negativas, cíveis e criminais. Mostra-se justificada, e relevante, a preocupação com as fraudes e com a enorme dificuldade que pode ser criada aos credores para identificar e localizar o devedor que tenha alterado o gênero. É verdade que a mera existência de dívidas ou de antecedentes criminais não obsta a mudança de prenome e gênero embora, como bem pontuou o ministro Ricardo Lewandowski naquele julgamento, fosse recomendável exigir a comprovação da cientificação dos credores acerca da mudança ou a comunicação às autoridades responsáveis, mas, jamais, a publicação de editais ou outras formas de publicidade da mudança, a fim de se preservar a privacidade da pessoa, ressaltou Lewandowski. Exatamente por essa razão foi estabelecido que a alteração teria natureza sigilosa e que a informação a seu respeito não poderia constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial (artigo 5º). O provimento, é bom que se diga, não autoriza a mudança do número do CPF2, mas apenas prevê que, finalizado o procedimento de alteração no assento, o RCPN comunique o ato aos órgãos expedidores do RG, ICN, CPF e passaporte, bem como ao TRE (artigo 8º). Porém, o ponto que quero destacar aqui refere-se ao direito de arrependimento da pessoa que mudou de gênero ou o direito à “destransição”, isto é, voltar ao sexo ou ao gênero anteriormente assentado no registro. O Provimento 73, no parágrafo 3º do artigo 2º, estabelece que a alteração “poderá ser desconstituída na via administrativa, mediante autorização do juiz corregedor permanente, ou na via judicial”. Noutros termos, condiciona o exercício do direito de arrepender-se a procedimento administrativo e prévia autorização do juiz corregedor. Lembro que da petição inicial da ADI 4.275 constava expressa postulação para que fossem fixados requisitos mínimos para mudança de nome e gênero, entre os quais a presunção de “alta probabilidade, que a pessoa não mais modificará sua identidade de gênero”, a ser atestada “por um grupo de especialistas que avaliem aspectos psicológicos, médicos e sociais”. Entretanto, como se vê pelos votos já disponibilizados, o STF não admitiu o estabelecimento de requisitos mínimos pré-estabelecidos para a mudança, muito menos laudos psicológicos, médicos ou sociais. Portanto, em um primeiro olhar, a pessoa “trans” que optou pela transição, e depois se arrependeu, não deveria submeter a opção de destransição registral à aprovação ou desaprovação de nenhuma autoridade3. Se a transição é manifestação da dignidade e da autodeterminação da pessoa humana, como ressaltado no paradigmático julgamento do STF, também a destransição ostenta a mesma natureza. Com todo o respeito, penso que o provimento, ao exigir a aprovação do juiz corregedor, infringe a decisão do STF, além de constituir óbice ao exercício do direito fundamental à busca da felicidade, uma vez que a autodeterminação da pessoa fica limitada e condicionada ao arbítrio de um terceiro4. Ora, se negar ou dificultar a alteração de gênero viola a dignidade e a liberdade, o mesmo se diga quanto a negar ou dificultar a destransição. Conferir ao juiz corregedor tamanho poder sobre a vida privada de alguém é retroceder ao estágio em que nos encontrávamos antes do julgamento da ADI 4.275. Quem pode se autodeterminar “trans” e “transicionar” também deve poder se arrepender e “destransicionar” com as mesmas facilidades. A destransição não representa uma nova mudança de gênero, mas o direito legítimo de retomar a sua vida pretérita, de retornar ao estado registral que a pessoa sempre ostentou, ainda que por algum período tenha pensado (ou sonhado) que poderia ser diferente. Arrepender-se de uma escolha, especialmente quando relativa a direitos da personalidade, jamais poderia estar condicionado ao beneplácito de um terceiro e, muito menos, constituir causa de discriminação, preconceito ou constrangimento. O direito fundamental de autodeterminação inclui tanto as escolhas, como o arrependimento pelas escolhas realizadas e mal concretizadas. Finalmente, o provimento é omisso quanto às consequências jurídicas do arrependimento. Sem prejuízo, não existe outra conclusão possível senão a de que os efeitos jurídicos da “destransição” serão rigorosamente os mesmos da transição registral, notadamente no que tange ao sigilo da mudança ou do arrependimento. A pessoa deve poder retornar à situação registral anterior à mudança de gênero, guardando-se pleno sigilo sobre o período em que se manteve “transicionada”. Ou seja, nenhuma referência sobre a vida pretérita do arrependido pode constar das certidões dos assentos. Para a sociedade em geral, é como se a pessoa jamais tivesse requerido a mudança de prenome e de gênero, de modo a evitar que as pessoas sejam discriminadas pelo arrependimento. 1 Parece paradoxal que a mudança de prenome e de gênero possa ocorrer por mera autodeclaração do interessado, enquanto a mais simples mudança de prenome, por razões exclusivamente ortográficas ou por conveniência, dependa de decisão judicial. O princípio da imutabilidade do prenome permanece rígido para uns casos e flexível para outros. Em julgamento recente (REsp 1.728.039), a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou, por unanimidade, recurso em que uma mulher pedia a retificação de registro civil para alterar o prenome, de Tatiane para Tatiana. De acordo com o colegiado, faltou fundamento razoável para afastar o princípio da imutabilidade do prenome e tornar possível a alteração do registro. Segundo o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do caso, “o mero desejo pessoal do indivíduo, por si só, isto é, sem qualquer peculiaridade, não justifica o afastamento do princípio da imutabilidade do prenome”. 2 Muito embora, a meu sentir, a mudança de número é imperativa, pois o CPF é o indexador de grande parte dos cadastros utilizados no comércio, onde se costuma identificar o gênero do consumidor e cuja movimentação implicará, no mínimo, na quebra de sigilo sobre a alteração. 3 Provimentos dos TJ-SP e TJ-RS chegaram a exigir que a destransição fosse sempre judicial, em manifesto contraste com a decisão do STF. 4 O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 898.060, consolidou o entendimento, já assente naquela corte constitucional, de que o “direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º,III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares”. Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).