Está presente em vários países, como a França, embora com tendência de mudança, a ideia de que deve prevalecer o princípio do anonimato absoluto dos doadores de gametas em reprodução humana assistida, para preservar o seu direito à confidencialidade, principalmente de espermatozoides, assim como o direito ao sigilo que a maior parte dos destinatários da técnica desejam na utilização do método de procriação artificial. Em outros países, como o Brasil, a posição de divulgação completa da identidade do doador já prevaleceu, e o sigilo foi retomado, como será explicado adiante. Na Argentina, uma posição intermediária é adotada. O Código Civil e Comercial Argentino de 2015, nos artigos 563 e 564, estabelece o direito à informação de pessoas nascidas por técnicas de reprodução humana assistida, desde que existam razões fundamentadas e avaliadas como justificadas pela autoridade judiciária; assim, naquele país pode ou não ser revelada a identidade do doador a depender das justificativas apresentadas. E, ainda, para a revelação somente dos dados genéticos do doador, sem revelar a sua identidade, o requerente pode pedir ao centro de saúde onde foi realizada a reprodução artificial os dados fenotípicos do doador, para tratamento de saúde. No Brasil, atualmente, a confidencialidade ou sigilo do doador voltou a vigorar, desta forma, uma pessoa artificialmente procriada, não poderá saber quem é seu pai, em razão do Provimento n. 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovado em 14 de novembro de 2017, que resolveu seguir as normas de deontologia do Conselho Federal de Medicina (CFM) nesse sentido. Assim, somente os dados genéticos (amostra do material celular do doador) e fenotípicos do doador, assim como seus dados clínicos de caráter geral, podem ser revelados exclusivamente ao médico da pessoa assim gerada e que necessitar dos mesmos para seu tratamento de saúde. Note-se que o CNJ, em março de 2016, por meio do Provimento n. 52, tinha determinado a revelação da identidade do doador, além do arquivamento dos dados fenotípicos no Cartório de Registro Civil, sempre sem a constituição de vínculo jurídico entre o doador a pessoa gerada por reprodução assistida, em razão de manifestação da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) nesse sentido. Em Portugal, na ali chamada Procriação Médica Assistida, vigorava o anonimato dos gametas de doadores, em modelo assemelhado ao da Argentina, inclusive na alteração da legislação do país do ano de 2016 (Lei n.º 32/2006, de 26 de julho – LPMA – n. 1 e 4, na redação das Leis n. 17/2016, de 20 de junho, e n. 25/2016, de 22 de agosto). Mas o Tribunal Constitucional Português declarou inconstitucionais aquelas regras sobre o anonimato do doador. Esse anonimato foi, então, completamente desfeito. A divulgação da identidade do doador não depende mais de qualquer justificativa em processo judicial (decisão de 30 de abril de 2018,disponível aqui). Um grupo de trinta deputados requereu à Assembleia da República Portuguesa, com base na Constituição daquele país, a declaração de inconstitucionalidade da Lei da Procriação Medicamente Assistida, com a determinação de que seja revelada a identidade do doador, independentemente de justificativa em processo judicial. Em meu entendimento, melhor está Portugal na regulamentação da reprodução assistida e pior está o Brasil nas normas administrativas que acompanham as da deontologia médica. Como aponta José de Oliveira Ascensão, há interesses econômicos nas técnicas de reprodução assistida e “com este detonador econômico casa-se o egoísmo próprio da sociedade de massa”, de modo que o anonimato do doador favorece as doações de esperma e leva a um número maior de usuários da técnica (“O início da vida”, in Estudos de direito da bioética, volume II, de sua coordenação, Coimbra: Almedina, 2008, p. 12), o que acaba por ferir os direitos fundamentais da pessoa gerada por reprodução assistida, violando os seus direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade. A pessoa nascida por reprodução humana assistida, ao ser cientificada sobre os meios artificiais utilizados para sua reprodução, sendo proibido o conhecimento de sua origem biológica, certamente fará perguntas que serão impossíveis de responder. De onde eu vim? Quem é meu pai biológico? Qual é a minha família de origem? Onde está minha ascendência? E tudo indica que poderá instalar-se uma crise existencial, uma vez que nunca terá a oportunidade de conhecer sua verdadeira ascendência. É o princípio da dignidade da pessoa humana gerada por reprodução assistida, como cláusula geral de proteção da personalidade, que deve prevalecer na ponderação entre os direitos fundamentais de quem é concebido e nasce de reprodução assistida e o direito do adulto que voluntariamente optou por doar gameta e daquela outra pessoa adulta que quis ter um filho por meio da procriação artificial. Ao aplicar as técnicas de reprodução assistida deve ser valorizado o ser humano que vai nascer que, por sua vulnerabilidade, é quem mais precisa dessa proteção, a possibilidade de conhecer as suas origens biológicas. E, para que o foco da proteção não recaia exclusivamente sobre os doadores e os destinatários, mas considere, acima de tudo, aquele conjunto de direitos que constitui o valor mais importante a ser salvaguardado e em relação ao qual o Estado tem um dever particular de tutela, que é a proteção aos direitos da criança, Portugal passou a aplicar o princípio da divulgação da identidade do doador do material genético. Eu sempre defendi que o anonimato do doador deve dar lugar à preservação dos direitos da personalidade do ser humano nascido por reprodução assistida, o que analisei em tese de pós-doutorado, apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no ano 2013, com a comparação entre o direito português e o direito brasileiro, intitulada Reflexões sobre a Procriação ou Reprodução Assistida na Uniões entre pessoas do mesmo sexo (in Grandes Temas do Direito de Família, volume 2, coord. Regina Beatriz Tavares da Silva e Theodureto de Almeida Camargo Neto, São Paulo: Saraiva, 2014 p. 18 e 19). Vejam o resultado perverso do anonimato do doador num caso real, ocorrido na França, que já comentei anteriormente (aqui) e que, agora, com a modificação das normas do CNJ, pode ocorrer também em relação a casais brasileiros. Uma advogada francesa, de nome Audrey Kermalvezen, após casar-se, veio a saber que fora concebida por reprodução assistida com doação de gameta de outro homem que não era seu pai registral. Audrey sentiu o mundo abrir aos seus pés. Ela foi tomada de uma raiva intensa contra os pais, por terem escondido a verdade dela por quase trinta anos. A raiva e a indignação que a moça sentia pelos pais só foi atenuada porque, como advogada especialista em Bioética, ela sabia perfeitamente o quanto a medicina e a legislação francesa haviam contribuído para criar e manter aquela mentira, com o propósito de encorajar mais e mais pessoas a se tornarem doadores de gametas. A angústia que se abateu sobre Audrey não se devia exclusivamente à frustração de descobrir que o homem que passara a vida inteira pensando ser seu pai, não era de fato seu pai biológico. Sua situação era mais grave. Audrey casara-se com um homem da mesma idade, nascido na mesma região da França, também concebido por reprodução assistida. Sem poderem conhecer as identidades de seus pais biológicos, em razão do anonimato do doador que vigora na França, ela e o marido foram tomados pelo medo de que fossem irmãos, com a mesma ascendência biológica paterna. O casal iniciou então uma verdadeira batalha na justiça, estendida por anos, para descobrir a identidade de seus respectivos pais biológicos, ou, ao menos, para obterem a confirmação de que não são filhos biológicos do mesmo homem. Desse modo, além do vazio existencial que passou a viver Audrey, havia o temor do casal de prática involuntária de incesto. O casal passou a viver um drama terrível em razão da impossibilidade de conhecerem a suas origens genéticas. Note-se que, no Brasil, o CFM (Resolução nº 2.168 de 10 de novembro de 2017, Capítulo IV, item 6) autoriza que um doador produza 2 gerações de crianças de sexos diferentes numa área de 1.000.000 de habitantes. Levando-se em consideração que, de acordo com o IBGE, o município de São Paulo possui aproximadamente 12 milhões de habitantes e que a Grande São Paulo tem 21 milhões, existe a possibilidade de nascerem, respectivamente, 24 e 42 irmãos dentro dessas áreas geográficas oriundos da mesma doação de sêmen, ou seja, com o mesmo ascendente, se apaixonarem e praticarem, sem saber, o incesto. Mas o risco de incesto é muito maior tendo em vista que um doador de sêmen pode ter outros filhos naturalmente, os quais também poderão se apaixonar por seres humanos gerados de sua doação de esperma. Afinal, o ser humano gerado pela técnica de reprodução humana assistida não pode ser reduzido à mera condição de instrumento para a satisfação de interesses dos adultos. Como ensina Fernando Araújo, “trata-se amiúde de contribuir para o esclarecimento na tomada de decisões, guiando os ‘leigos’ pelo meio do oceano da ‘entropia informativa’, indicando quais as escolhas possíveis e os riscos inerentes, eventualmente ‘desencorajando’ a reprodução em alguns casos” (“A procriação assistida e o problema da santidade da vida”, Coimbra: Almedina, 1999, p. 81-82). Esse tema foi tratado no V Congresso Iberoamericano de Direito de Família e das Pessoas, realizado em São Paulo, pela Academia de Derecho de Família y de las Personas e pela ADFAS, de 29 a 31 de agosto deste ano de 2018, na Escola Paulista da Magistratura (EPM), na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e na Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). Palestraram sobre esse tema os Professores Doutores Débora Gozzo de São Paulo e Eduardo de Oliveira Leite do Paraná. Os debates foram muito ricos em conteúdo, com duas posições bem diferentes desses Professores: Débora Gozzo foi pela quebra do anonimato do doador e Eduardo Leite foi favorável a manutenção do sigilo na identificação do doador. Conclui-se que o assunto é polêmico e merece tratamento legislativo, ou seja, pelo Congresso Nacional, não podendo ficar nas mãos do CFM e do CNJ, o CFM porque evidentemente protege a classe médica, como aliás deve fazer, para a qual o sigilo do doador deve ser preservado, já que favorece a reprodução assistida, e o CNJ porque tem competência restrita, nesse assunto, à área registral, não havendo, neste órgão, análise técnica profunda no terreno do Biodireito, o que é indispensável ao melhor tratamento da matéria. Aqui cabe lembrar que tramitam desde 2003 vários Projetos de lei na Câmara dos Deputados, que não andam adiante, sabe-se lá o porquê… *Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada