O herdeiro necessário é um privilegiadíssimo personagem do Direito das Sucessões, cuja existência impede o autor da herança de dispor integralmente do seu patrimônio, reduzindo ou retirando a quota a que faz jus esse herdeiro privilegiado.
No ordenamento jurídico brasileiro atual, a qualidade de herdeiro necessário encontra-se expressamente atribuída a determinadas pessoas pelo artigo 1.845[1] do Código Civil.[2] Existem, assim, três classes de herdeiros necessários, conforme a ordem da sucessão legítima: a primeira classe, constituída pelos descendentes; a segunda classe, formada pelos ascendentes; e a terceira, integrada pelo cônjuge sobrevivente.[3]
Somente a lei pode retirar esse título privilegiado dos descendentes, dos ascendentes e do cônjuge sobrevivente. Não pode o autor da herança, ainda que proprietário em vida de todo o patrimônio, excluir nenhum desses herdeiros de sua sucessão, salvo nas estreitas hipóteses que autorizam a deserdação.
Herdeiros necessários, reservatários, forçados ou legitimários, ensina Luiz Paulo Vieira de Carvalho, são aqueles que se apresentam “como um sucessor universal privilegiado, por força do ofício de piedade (officium pietatis), isto é, da afeição presumida e do dever de amparo que o autor da herança deve ter em relação a seus familiares mais próximos, aqueles a quem a lei garante uma quota mínima da herança (Princípio da Reserva)”.[4]
Diz a doutrina que o fundamento da legítima está no vínculo familiar e que o princípio da intangibilidade da quota necessária efetiva a especial proteção que o Estado dispensa à família, além de concretizar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, na medida em que, segundo Ana Luiza Maia Nevares, “preconiza uma distribuição compulsória dos bens entre os membros mais próximos da comunidade familiar, em virtude da morte de um deles”.[5]
A legítima dos descendentes derivaria da obrigação natural dos pais de não deixar abandonados e desarmados no meio da sociedade aqueles a quem deram o sangue e a vida, enquanto a legítima dos ascendentes se assenta na compensação dos sacrifícios feitos com a educação dos descendentes. Itabaiana de Oliveira se refere aos vínculos “que fazem presumir qual seria a vontade do de cujus se tivesse disposto de seus bens, pela afeição e amor que se supõe existirem entre ele e seus conjuntos, e em que se funda a vontade de beneficiar; porque o homem não tem objeto mais amado do que os seus filhos, por ser a sua causa eficiente, nem mais sagrada do que os pais, a quem deve o ser”.[6]
Será que essa é uma realidade atual?[7]
Em tempos de afetos líquidos, de vínculos fluidos e de instituições familiares rarefeitas pela informalidade e pelo descompromisso, ampliar a liberdade testamentária não incentivaria mais uma solidariedade familiar autêntica, fundada no afeto em direção a uma herança conquistada em substituição a uma transmissão hereditária forçada?
Não é de hoje que esse argumento é invocado pela doutrina. Carlos Maximiliano já mencionava que, com o progresso cada vez mais amplamente avassalador do individualismo, a expansão da faculdade de dispor do patrimônio próprio, causa mortis, fortificaria nos progenitores a consciência da responsabilidade pelo futuro dos filhos e que a “limitação demasiada de tal franquia fomenta o egoísmo; tolhida em seus anseios de satisfazer as próprias inclinações e vaidades, a maioria se apressa a despender, indiferente, descuidosa, em vida o produto do próprio labor, e este se torna menos persistente”.[8] Conclui, citando Le Play, que da supressão da faculdade de testar resulta o enfraquecimento dos laços de família e da iniciativa individual.
No Projeto de Código Civil de Coelho Rodrigues chegou a ser proposta a supressão por completo da quota necessária, afirmando-se, entre outros argumentos, ser imoral fazer do filho um credor dos seus pais, pois “tal sistema desmoraliza a autoridade paterna e corrompe a mocidade com o luxo, a inação, o vício” e que ao “limitar a faculdade de dispor do patrimônio, a lei diminui o estímulo para o trabalho, o aperfeiçoamento da produção, a economia”.[9]
É verdade que a grande maioria dos povos ligados ao direito romano-germânico mantém uma quota hereditária destinada à transmissão obrigatória a determinados herdeiros. Mas será que essa realidade não se desgastou em razão da evolução da sociedade e do próprio pensamento jurídico que normalmente lhe vem a reboque? Para Jorge Duarte Pinheiro, em um contexto em que se proclamam os princípios da igualdade de oportunidades e da liberdade de disposição, mostra-se discutível a previsão da sucessão legitimaria. E questiona: “Por que razão uma pessoa está impedida de determinar, de forma relativamente incondicionada, o destino da generalidade dos bens que lhe pertencem? Por que motivo certas pessoas em regra, obtêm forçosamente o direito a adquirirem patrimônio independentemente do mérito e graças a um vínculo familiar (de parentesco ou conjugal) que têm com o de cujus? Não seria suficiente, após a morte do de cujus, uma proteção imperativa da família que se refletisse em obrigações de alimentos exigíveis à herança e em legados legais tendo como objeto a casa de morada da família e o respectivo recheio? Nesta época, em que a riqueza é sobretudo fruto do trabalho e de decisões individuais de aplicação do capital, em que a família perdeu a sua antiga função de unidade de produção, será pertinente entender a sucessão mortis causa como uma contrapartida justa da colaboração prestada pelos familiares ao de cujus na formação do patrimônio”?[10]
A discussão torna-se cada dia mais atual, mostrando-se premente uma reavaliação do instituto, tanto no que se refere a quais membros da família se quer proteger, como aos próprios limites da proteção.
Os pretextos antilegitimistas (desfavoráveis à reserva hereditária) tradicionais, outrora baseados na autonomia da vontade e na concepção individualista do direito de propriedade, se transformaram. De fato, não cabe mais se falar em fortalecimento da autoridade paterna ou em prevalência ilimitada da liberdade de testar, fonte de injustiças e que “pode servir de instrumento de instituições aristocráticas e obsoletas”, como pontua Orosimbo Nonato: “Falso, é, pois, o colorido democrático que se pretende emprestar a um instituto transformável em meio para restauração da grandeza e poderio das classes”.[11]
Os argumentos antilegitimistas hoje são outros. Fala-se em ineficácia, inutilidade e inconveniência da legítima, em razão da transformação sociológica e jurídica da família, da existência de outros mecanismos protetórios da família fora do direito sucessório, a exemplo do direito securitário, da longevidade crescente da população, aliada à queda de natalidade, afastando, progressivamente, a utilidade e a eficácia da legítima em face dos descendentes, que se tornarão herdeiros efetivos normalmente quando já financeiramente independentes e, finalmente, descabendo invocar o princípio de solidariedade familiar em desfavor do autor da sucessão quando os herdeiros legitimários não necessitam daqueles bens para seu sustento.[12]
Refletindo à luz desse novo contexto, poderíamos indagar se a limitação da liberdade de testar, forçada pela intangibilidade da legitima, mantém a sua adesão social? Ou, ainda que a mantenha, se guardaria o mesmo vigor de outrora?
Observa com muita propriedade Oliveira Ascensão que não obstante a função do Direito das Sucessões seja a de servir à continuidade através das gerações, frequentemente a sucessão se traduz em ruptura, fazendo eclodir dramas familiares decorrentes de disputas patrimoniais.[13] Essa realidade de ruptura torna-se especialmente dramática quando as regras legais cogentes se encontram dissociadas dos anseios sociais, afastando-se de uma expectativa geral que concilie a vontade presumida do autor da herança com os interesses e aspirações dos herdeiros.[14]
No Brasil isso ocorre principalmente em relação à chamada sucessão necessária. Entendemos, assim, que o momento atual é de revisitação da legítima. E não apenas a legítima do cônjuge (e eventualmente) do companheiro, foco central das maiores discussões, mas também a legítima dos descendentes e ascendentes.[15]
[1] Artigo 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
[2] No código anterior (CC/1916), o título legitimário posto como restrição à liberdade de testar estava previsto no artigo 1.721, com a seguinte redação: “O testador que tiver descendente ou ascendente sucessível, não poderá dispor de mais da metade de seus bens; a outra pertencerá de pleno direito ao descendente e, em sua falta, ao ascendente, dos quais constitui a legítima, segundo o disposto neste Código (arts. 1.603 a 1.619 e 1.723)”.
[3] Já escrevi que que o cônjuge é herdeiro da terceira classe. Apesar de concorrer, nas hipóteses em que a lei estabelece (artigo 1.829, incisos I e II), com descendentes (herdeiros da 1ª. classe) ou com ascendentes (sucessores de 2.ª classe), o cônjuge permanece na 3.ª classe. Concorre excepcionalmente com herdeiros de 1.ª e 2.ª classes, mas é sucessor da 3.ª classe. Quando o Código fala que o cônjuge concorre com descendentes ou com ascendentes é exatamente porque não o considera integrante daquelas classes. “Concurso”, no caso, significa o chamamento de pessoas com qualificações jurídicas diversas (DELGADO, Mário Luiz. Controvérsias na sucessão do cônjuge e do convivente. Uma proposta de harmonização do sistema. In: Mário Luiz Delgado; Jones Figueirêdo Alves (org.). Questões controvertidas no direito de família e das sucessões, vol. 3. São Paulo: Método, 2005, pp. 417-446).
[4] VIEIRA DE CARVALHO, Luiz Paulo. Direito das sucessões. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 464.
[5] NEVARES, Ana Luiza Maia. O princípio da intangibilidade da legítima. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 538. Segundo a autora não se pode conceber a solidariedade constitucional em seu caráter essencialmente beneficente, não se podendo exigir que alguém sinta algo de bom pelo outro, mas que se comporte como se o sentisse”.
[6] Tratado de direito das sucessões. Vol. II. Da sucessão testamentária. São Paulo: Max Limonad, 1952, p. 625.
[7] No início do século passado, Lacerda de Almeida já contestava a presunção de afeição como fundamento da legítima, ao afirmar que ela “pode ser desmentida pela realidade, nem está nas mãos do legislador suprir de modo completo as intenções do defunto” (LACERDA DE ALMEIDA, Francisco de Paula. Successões. Rio de Janeiro: Typ, 1915, p. 194).
[8] MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões, vol. I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1952, p. 361.
[9] MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões, cit., p. 366.
[10] DUARTE PINHEIRO, Jorge. O direito das sucessões contemporâneo. 2ª ed. Lisboa: AAFDL, 2017, p. 178.
[11] Estudos sobre sucessão testamentária. Vol. II. Rio de janeiro: Forense, 1957, p. 367. O autor afirma que esses argumentos servem de motivos a surtos e raptos oratórios, citando a seguinte passagem de Joaquim Costa: “Ao cabo de tantos anos de indecisão e de porfia o fiel da balança pende para a liberdade... Morreu o despotismo e não ressurgirá ao terceiro dia, nem ao terceiro ano, nem ao terceiro século: está chegando ao seu término a generosa cruzada que vai resgatar o sepulcro onde, há tantos anos, jaz oprimia a liberdade”.
[12] Ver, por todos, Ioanna Kondyli, citada por Ana Luiza Maia Nevares (NEVARES, Ana Luiza Maia. O princípio da intangibilidade da legítima, cit., p. 540).
[13] “À volta da herança suscitam-se dramas familiares; assiste-se à dissolução precoce da coesão da família de sangue; e criam-se bloqueios no próprio fluir das relações patrimoniais” (ASCENSÃO, José de Oliveira. O herdeiro legitimário. Texto de conferência proferida em 6.12.1996 no Ciclo de Homenagem ao Dr. João António Lopes Cardoso, promovida pela Ordem dos Advogados do Porto, p. 6 . Disponível em: https://portal.oa.pt/upl/%7B9010dcad-dac4-472e-81e6-a36e1435dbc5%7D.pdf. Acesso: 7.12.2017).
[14] Para Ascensão, “a lei não se mostra adequada para atalhar a este estado de coisas; talvez não esteja sequer interessada em fazê-lo. As soluções mais simples não são facilitadas. Tudo para gáudio da burocracia” (ASCENSÃO, José de Oliveira. O herdeiro legitimário, cit., p. 6).
[15] Na França, a partir da reforma de 2006, os ascendentes deixaram de ser herdeiros necessários.