“To be or not to be, that is the question”
Em nossa última coluna nesta ConJur, analisava eu os argumentos contidos no voto do Ministro Barroso (RE 878.694/MG) para reconhecer a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC. O primeiro argumento foi que (a) não é legítimo desequiparar casamento e união estável para fins sucessórios, pois a hierarquização é incompatível com a Constituição Federal. Vamos ao segundo argumento. (b) “Diferenciação legítima ou arbitrária, eis a questão” O voto reconhece que a ampliação do conceito de família não implicou equiparação absoluta entre casamento e união estável. Diferenças existem quanto à criação, comprovação e extinção. Logo, é possível que o legislador crie regimes diferentes para os institutos. A diferença não é, por si, inconstitucional. Contudo, a questão é saber se a diferenciação é legítima ou arbitrária (item 42 do voto). Segundo o Ministro Barroso, são esses adjetivos que caracterizarão a inconstitucionalidade: se a diferenciação for legítima ela é constitucional, mas se arbitrária será inconstitucional. O Ministro exemplifica como legítima a diferença quanto aos requisitos para comprovação dos institutos (item 44). Então vem a questão: como podemos saber se a diferenciação feita pela lei é ou não arbitrária? A dúvida de Hamlet passa a ser a dúvida de todos os juízes ao aplicarem o Código Civil e demais leis em matéria de união estável. Da leitura do voto do Ministro Barroso percebe-se uma linha condutora. Só é constitucuonal a diferença quando da criação, comprovação e extinção, logo, em termos de efeitos, união estável e casamento não podem ser diferenciados, sob pena de arbitrariedade e consequente inconstitucionalidade. b.1) Diferenças na criação são legítimas, logo constitucionais O casamento passa pelo ritual de habilitação, celebração e registro no livro B do Registro Civil e a união estável é um simples fato da vida: união pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituir família. É legítima e constitucional a diferença. Assim, não se exige “procedimento de habilitação” para os companheiros iniciarem sua união estável, nem que ocorra “celebração da união estável”, muito menos seu registro no livro E do do Registro Civil. A criação da união estável prescinde de contrato escrito. b.2) Diferenças na comprovação são legítimas, logo constitucionais O casamento se comprova pela certidão de casamento, já que este é registrado no livro B do Registro Civil. A certidão é a prova essencial de sua existência. Já a união estável pode ser comprovada por simples prova testemunhal, por contrato escrito ou mesmo escritura pública. É verdade que mesmo o casamento admite a prova do estado de casado em casos de perda ou destruição do livro em que o casamento está registrado. Nessa hipótese, os cônjuges conjunta ou isoladamente podem promover uma ação para provarem a existência do casamento e seu início. Também deve-se frisar que com os avanços tecnológicos no sistema registral e notarial dificilmente essa situação se verifica na atualidade, mormente para os casamentos mais recentes. Essas diferenças são constitucionais. b.3) Diferenças na extinção são legítimas, logo constitucionais. O casamento válido só termina pela morte de um do cônjuges (velho adágio pelo qual mors omnia solvit), pela invalidade (seja o casamento reconhecido como nulo ou anulável) ou pelo divórcio. A separação de fato não põe fim ao casamento. Isso não significa dizer que a separação de fato não produz qualquer efeito. O STJ há algum tempo reconhece que a separação de fato põe fim ao regime de bens e aos deveres dos cônjuges, mormente a fidelidade conjugal. Aliás, o próprio CC reforça a importância da separação de fato ao permitir a união estável de pessoas que se encontram nessa situação (art. 1.723, p. único do CC). Todavia, se divórcio não hover não será possível novo casamento, sob pena de bigamia (art. 1.521, VI do CC). Assim, é a sentença ou escritura pública de divórcio que põe fim ao casamento. Seus efeitos são ex nunc, não retroativos. Já a união estável, como simples relação de fato, começa e termina de maneira informal. A separação de fato põe fim à união estável e se decisão judicial houver, apenas declara um fato já ocorrido. Seus efeitos são ex tunc, logo retroativos. Essas diferenças são constitucionais. b.4) Diferenças quanto aos efeitos são ilegítimas, logo inconstitucionais A aparente simplicidade da questão até o momento não deve iludir o leitor. A partir de agora, vem um cipoal, uma emaranhado de problemas que decorrem do voto do Ministro Barroso. Em matéria de efeitos, o CC desiguala em diversos dispositivos a união estável do casamento, o que então conduziria à inconstitucionalidade dos dispositivos a saber: i) Todas as regras sucessórias aplicáveis aos cônjuge se aplicam aos companheiros. Assim, na redação do artigo 1.829, onde se lê atualmente “cônjuge” se lerá “cônjuge ou companheiro”. Essa leitura se espraia por todo o livro de Sucessões. Dúvida não há que cônjuge e companheiro terão direito real de habitação em caso de falecimento do outro (art. 1.831 do CC). Todos os dispositivos de concorrência sucessória se aplicam igualmente aos companheiros: art. 1.832 (concorrência com descedentes) e art. 1837 (concorência com ascendentes). O companheiro exclui o colateral da sucessão (art. 1.838). Assim, o cônjuge e o companheiro são herdeiros necessários fazendo jus à legítima (art. 1.845 do CC). O companheiro retorna à situação sucessória existente antes da vigência do CC/02 em que tinha idênticos direitos sucessórios se comparados aos cônjuges. ii) A presunção pater is est do artigo 1.597 se aplica à união estável. O filho da mulher casada ou da companheira se presume filho de seu marido ou companheiro a partir da decisão do STF. Assim, basta que a companheira leve ao Registro Civil seu contrato de união estável, por instrumento público ou particular, para que a presunção se aplique. O leitor, já em pânico, pode se perguntar: e se a união estável já tiver sido dissolvida, ou se o contrato for falso, como fica a paternidade? Caberá ao pai impugná-la, pois se trata de presunção simples. Aliás, mesmo problema ocorre com o casamento. Se os cônjuges estiverem separados de fato a presunção relativa poderá ser afastada pelo marido em ação própria. iii) A outorga conjugal se aplica também à união estável, pois seria arbitrária a sua exigência apenas para o casamento Como a união estável pode nascer sem qualquer instrumento que a comprove, temos que distinguir as situações fáticas. Se as pessoas se declaram eum união estável, as regras da outorga uxória e marital se aplicam in totum a elas, nos exatos termos do art. 1.647 do CC. É o caso de uma aquisição de imóvel em que o vendedor se declara “solteiro em união estável”. Se houver um contrato de união estável ou sentença registrados no 1º Registro Civil de Pessoas Natural, em seu livro E, os efeitos são idênticos[1]. Se a união estável não contar com essa comprovação documental, se for simplesmente um fato da vida, haverá sim a incidência das regras referentes à outorga conjugal, mas não perante terceiros de boa-fé, que desconheçam a existência de união estável. Seus efeitos se limitam à relação entre os companheiros. iv) Quanto ao contrato de união estável temos a regra do art. 1.725 pela qual as partes devem convencioná-lo por escrito, seja por escritura pública, seja por instrumento particular. Para o casamento, o pacto antenupcial terá sempre a forma pública (art. 1.653). Com a decisão do STF sobre diferenças legítimas e arbitrárias, não há razão para se permitir uma forma menos rígida (instrumento particular) para a união estável e outra mais rígida (escritura pública) para o casamento. O contrato de união estável necessitaria da forma pública para ter validade, já que a diferença é arbitrária, logo inconstitucional. Resta uma questão: a mudança de regime de bens no casamento exige um procedimento judicial e determinados requisitos (art. 1639, par. 2º do CC). O mesmo se aplicaria aos companheiros que pretendessem alterar seu regime de bens? A questão exigirá reflexão mais profunda que será feita em momento futuro. [1] Provimento 37 do CNJ.
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