Ainda não conseguimos acautelar-nos contra o fetiche da lei. Acreditamos que a lei resolva tudo. Bastaria, contudo, uma consistente reflexão para saber que não é assim.
Os romanos já afirmavam, com inegável razão: Summum ius, summa injuria — ou seja, o excesso de direito conduz à mais profunda injustiça. E um escritor francês, Jean Cruet, chegou a escrever um livro, A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis, com epígrafe eloquente: Sempre se viu a sociedade modificar a lei; nunca se viu a lei modificar a sociedade.
Mais direta e corajosamente, Stanislaw Ponte Preta vaticinava que, se a lei de fato funcionasse, bastaria uma para corrigir o Brasil: Artigo 1º - Todo brasileiro passa a ter vergonha na cara. Artigo 2º - Revogam-se as disposições em contrário.
O excesso de normas não faz do nosso país o mais justo de todo o planeta. Ao contrário, o cipoal normativo e a fluidez dos textos legais comprometem a funcionalidade do equipamento estatal encarregado de solucionar as controvérsias. Não se conseguiu, até o momento, consolidar todas as leis vigentes no Brasil.
A tarefa é inviável, tal a proliferação. Pois, além da lei propriamente dita, o fruto do processo legislativo produzido pelo Parlamento — nos três níveis da Federação —, existe uma abundância de regras editadas pelas agências, pelas instituições financeiras e pelas entidades criadas pelo Estado para poder exercitar as suas crescentes e infindáveis atribuições.
O ensino do Direito durante longo tempo se confundiu com o aprendizado de textos legais. A disciplina Direito Civil poderia resumir-se à leitura e a breves comentários sobre o Código Civil. E assim acontecia com o Direito Penal, o Direito Constitucional, o Comercial, o Processual e tantos outros.
A insuficiente compreensão do fenômeno jurídico gerou a profusão de Faculdades de Direito que, no Brasil, superam em número a soma de todas as outras, existentes em todos os demais países da Terra. A disseminação do ensino do Direito registrou um subproduto hoje considerado indesejável: a multiplicação de demandas judiciais, a excessiva judicialização da vida brasileira.
Só recentemente se acordou para um problema grave. Judicializar não é solução, mas quase sempre representa embaraço ainda maior. O modelo sofisticado de Justiça tem cinco ramos — dois comuns (estadual e federal) e três especiais (trabalhista, militar e eleitoral) e quatro instâncias: juízo de primeiro grau, tribunais de segundo grau, Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF), ao menos para a chamada Justiça comum.
Escancarou-se a porta do Poder Judiciário, mas é difícil de encontrar sua saída. Não é improvável que um processo consiga perdurar durante mais de uma década. Até porque um sistema recursal caótico permite o reexame da mesma questão por dezenas de vezes.
O formalismo e o procedimentalismo, ínsitos à ciência processual, somou-se à burocracia herdada de nossas origens. Tudo colabora para que o Judiciário seja instrumentalizado e venha a servir mais eficientemente para institucionalizar conflitos do que para resolvê-los. Por isso é que os setores menos afeiçoados à resolução pacífica dos conflitos, incréus do sistema Justiça, não hesitem a recorrer ao Judiciário para ganhar todo o tempo que o mercado, a urgência empresarial e a vida negocial nunca lhes concederia.
Chamado a resolver todos os litígios, o Judiciário tende a crescer até o infinito. A necessidade de orçamentos gigantescos e bilionários esbarra na insuficiência dos recursos financeiros, oriundos de contribuição de cada brasileiro para o sustento de máquina inflada e bem distanciada de satisfazer o princípio da eficiência.
Colabora para agravar ainda mais a situação a inconsistência de muitas políticas públicas por parte de quem deveria implementá-las. À falta de atuação administrativa, é ao Estado-juiz que a população acorre. E como o juiz não pode negar jurisdição, o atendimento é considerado intromissão nefasta nas prerrogativas da administração. É o que ocorre em relação à judicialização da saúde, das vagas em creche, das vagas na educação fundamental, no direito à moradia e em outros temas recorrentes na sociedade complexa, heterogênea e carente de um Brasil desperto para a era dos direitos.
Já passou da hora de reformular o ensino jurídico. A cultura adversarial está superada. O momento é de instaurar um espírito de pacificação. Despertar no ser humano a consciência de que os desencontros podem ser atenuados quando existir boa vontade.
O estranhamento entre as pessoas é natural. Irracional é levá-los todos à burocracia do Judiciário. E não é apenas para reduzir a elevada carga de ações submetida à apreciação do Estado-juiz. É para algo muito mais sério. Se a sociedade não acordar para assumir o seu protagonismo, continuará a ser teleguiada e tutelada, incapaz de gerir os seus próprios interesses, mas sempre a necessitar de um guia que por ela fale.
A era dos direitos não pode ser confundida com a era das leis. O direito é um fenômeno muito mais abrangente do que a literalidade. Sua função é destrinchar situações de embaraço, desanuviar as relações, desfazer ressentimentos, restaurar a ordem ferida. Levado a extremo, passa a representar insuportável plus aflitivo a incidir sobre quem, por já estar aflito, se socorreu da Justiça.
A intensificação dos litígios somente evidencia o mau uso da ciência jurídica. Sobram as leis num Brasil onde a injustiça é flagrante. E pior ainda: imersos no mundo virtual das elucubrações teóricas, tornamo-nos insensíveis à iniquidade, míopes à miserável realidade da exclusão, surdos ao desesperado clamor dos sedentos do sumo do justo concreto.
*José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.
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