Dentre as formas de constituição de família atualmente admitidas, a união estável é o instituto que mais atenção tem recebido de nossos Tribunais, em linha com a proteção estatal conferida pela Constituição vigente. O fato decorre da natural significância que a união estável adquiriu em nossa sociedade, o que levou as Cortes – perante a costumeira inércia do legislador - a buscar, por meio de suas decisões, compatibilizar a realidade social com o arcabouço jurídico posto, de forma a concretizar os mandamentos constitucionais, que prescrevem o real reconhecimento da união estável como entidade familiar.
Se de um lado o casamento ainda é a principal e tradicional forma de constituição de família, de outro não exige maiores esforços legislativos ou jurisdicionais para sua aplicação. Entre esses dois institutos existe ainda a família monoparental, que também encontra guarida na jurisprudência. Contudo, inegáveis os avanços e o cuidado observados, relativamente às diferentes formas de constituição familiar, permitiram a evolução da união estável, e quiçá, a elevarão como o instituto prevalecente perante o casamento, nas próximas décadas. Não obstante, ainda resta um longo caminho nesta trilha evolutiva, considerando-se que se vislumbra no horizonte uma ampliação do reconhecimento e dos efeitos da união estável, de modo a equipará-la, cada vez mais, aos do casamento.
O marco jurídico da regulamentação da união estável se deu com a lei 9278/96. Desde então, como natural na busca de acomodação do instituto jurídico no ordenamento positivado, muitas polêmicas surgiram em torno da questão. O próprio entendimento da Corte Suprema evoluiu. Em 2008, o STF reverteu a decisão do Tribunal de Justiça da Bahia, que reconhecera a união estável de uma pessoa casada, que possuía 11 filhos de seu casamento e 9 outros de sua convivência estável com outra pessoa1. Considerando, à época, que o artigo 226 da Constituição tinha “como objetivo maior a proteção do casamento”, a Corte Maior entendeu pela existência de impedimentos (art. 1521 CC) a obstar o reconhecimento da segunda união. Fundamentando que “o reconhecimento da união estável pressupõe possibilidade de conversão em casamento”, indeferiu o pedido da recorrente (companheira), que a postulava. Não obstante, no voto do relator, já demonstrava atenção à situação fática da convivência duradoura com objetivo de constituição de família, ainda que exista casamento formal. Dizia o Ministro Marco Aurélio: “esse estado civil”, (de casado), “apenas deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato”, em clara observância do disposto no parágrafo 1º. do artigo 1521 CC. No caso em tela, o varão mantinha a convivência diária com a esposa, conforme relatam os autos, motivo descaracterizador da separação de fato. Como o varão conseguia manter uma segunda convivência estável, a ponto de quase “empatar o jogo” (afinal, foram 11 contra 9), isso, não sabemos – os autos não explicam. Mas aparte de todos os motivos que eventualmente justificavam ao falecido sua adjetivação no caso em lume, fato é que o STF considerou a relação afetiva do sujeito casado como concubinato. Logo, a desmerecer a proteção estatal. Passados alguns anos, o STJ2, passa a valorizar em grau maior o dispositivo legal, tendo a separação de fato como suficiente para caracterizar a união estável de pessoa casada, desde que presentes os requisitos do artigo 1723 do Código Civil, frisando a posição de que, em não havendo prova suficiente nos autos da separação de fato, não se caracteriza a união estável. A contrário senso, dá, portanto, a entender, que a separação de fato é suficiente para descaracterizar o casamento válido, isto é, não desfeito pelo divórcio – o que ainda dá margem para várias considerações, especialmente diante da dificuldade de sua prova.
A alteração do nome do companheiro, em decorrência de união estável é outro exemplo marcante desta evolução. Se, anteriormente, nem sequer se cogitava desta possibilidade, pois se considerava que, a ausência de dispositivo legal a prever tal hipótese era fato proibidor desta alteração, o entendimento jurisprudencial evoluiu de forma a reconhecer que a ausência de regramento específico possibilita a aplicação analógica das disposições da lei civilista (art. 1565 CC), no que tange a adoção de sobrenome no casamento. Assim restou relatado o acórdão pela Ministra Nancy Andrighi3, que, porém, frisava a exigência de diversas formalidades, dentre as quais, a mais importante, a “primazia da segurança jurídica que deve permear os registros públicos, exigindo-se um mínimo de certeza da existência da união estável, por intermédio de uma documentação de caráter público, que poderá ser judicial ou extrajudicial, além da anuência do companheiro quanto à adoção do seu patronímico”. Note-se que, novamente, é reafirmada a necessidade de instrumento de caráter público, (sentença judicial ou escritura pública), e, ressalta-se a importância da função notarial a resguardar tal segurança e validar o ato desejado pelas partes, para que se produzam os efeitos almejados.
Interessante notar também que a mesma decisão estende alguns aspectos do casamento à união estável, como por exemplo, relativamente às causas suspensivas (art. 1523 CC), em cujo julgamento, assim restou ementado: “Além de não configurar impedimento para o casamento, a existência de pendência relativa à partilha de bens de casamento anterior também não impede a caracterização da união estável, nos termos do art. 1.723, §2º, do Código Civil.” A modernidade do entendimento também se refletiu em outro excerto ementado: “Devem ter aplicação analógica as disposições específicas do Código Civil, relativas à adoção de sobrenome dentro do casamento, porquanto se mostra claro o elemento de identidade entre os institutos”.
O novo entendimento dos Tribunais pátrios acerca da evolução da união estável culminou com a regulamentação do CNJ por meio do Provimento n. 37, no último dia 7, que dispôs sobre o registro do título público que confere reconhecimento à união estável, no Livro “E” do Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais competente, que a coloca, em seu artigo inaugural, como facultativo.
É certo que a esta regulamentação inicial evoluirá e será complementada, e já surgem inúmeras sugestões e críticas. Dentre elas, cabe destacar a possibilidade – ou necessidade – da propagação destes efeitos sobre o registro imobiliário, levando as consequências patrimoniais deste reconhecimento à publicidade. Tal aspecto implicaria a análise também sobre sua compatibilidade com a não obrigatoriedade do registro da união estável.
Sabendo que o tema rende certamente várias laudas, e como há muitos outros mais habilitados a tratar da questão, deixo neste momento, apenas estes elementos para reflexão, pontuando, acima de tudo, que o conhecimento do notário da jurisprudência atual e sua evolução será crucial para o atendimento e orientação daqueles que desejam constituir ou dissolver uma união estável, principalmente nos aspectos que impedem ou permitem seu reconhecimento, devendo estar atento à tendência de extensão dos inúmeros efeitos do casamento à união estável e às questões que precisarão ser analisadas no momento da elaboração de uma escritura, pois surgirão novas, saudáveis e inimagináveis questões e conflitos decorrentes desta recente e positiva regulamentação.
1 STF. RE 397762 / BA. 1ª. Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento: 03/06/2008. DJe 11/9/2008
2 STJ. REsp 1096539-RS, 4ª. Turma. Rel. Min. Luis F. Salomão, Julgamento: 27/3/2012. DJe 25/04/2012.
3 STJ. Resp. 1306196- MG. 3ª. Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgamento: 22/10/2013. DJe 28/10/2013
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